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PECADORES CONFESSOS...

sábado, 10 de outubro de 2009

MULHERES QUE PECAM N.4 - EMMA BOVARY (Parte II)

A mudança para uma cidade mais movimentada inaugura, portanto, a Parte II do romance. Num ambiente mais dinâmico, porém ainda com características rurais, Emma parece fazer um esforço de auto-controle. Sua obsessão pela boa aparência começa a se acentuar a partir deste ponto, por ocasião de uma maior facilidade de consumo. A transformação do desejo em necessidade passa a ter uma ênfase maior, na medida em que Emma se entrega a um consumo desenfreado, como que preenchendo um espaço vazio. A aparência sempre impecável, ressaltando a sua beleza natural, funciona como uma segunda pele, que esconde uma mulher triste, e uma mãe quase negligente. A filha representa, para Emma, a prova viva do seu infortúnio, e ela não consegue lidar com a criança, muito embora não a odeie. Precisamente por isso há pouquíssimas menções ao bebê nos primeiros capítulos da Parte II da narrativa. A criança parece não fazer parte dos seus planos, ou de suas lembranças. É para encobrir essa amargura, como também a culpa de não corresponder, no seu íntimo, ao papel que esperam dela, que Emma constrói a máscara da bela dama, confundindo intencionalmente beleza, status e felicidade.



É a partir da mudança para a cidade que Emma começa a alimentar a própria vaidade e, conseqüentemente, prestar atenção na reação masculina à sua presença. O primeiro “espelho” de Emma, nesta perspectiva, é Leon, assistente do advogado da cidade. As identificações de Emma, no decorrer da narrativa, sempre têm (ou fingem ter) apreensões românticas da realidade, e uma tendência à introspecção. Leon se encaixa perfeitamente nesta premissa. Rapaz tímido, leitor inveterado, desenvolve uma paixão platônica por Madame Bovary, com quem se solidariza através do gosto pela literatura e pela arte. É ao se dar conta dos sentimentos do rapaz que Emma começa a desenvolver as próprias ilusões românticas, as mesmas que ela julgava mortas depois do casamento com Charles. É quando Flaubert passa a discutir o tema mais polêmico associado a este personagem feminino, que é a transgressão moral de Emma, ao imaginar-se apaixonada por outro homem.


É importante observar que o estilo narrativo adotado por Flaubert, até este ponto, parece preparar o terreno para o adultério da heroína. Afinal, não há heroísmo sem desafio, para o bem ou para o mal. Flaubert, como já foi dito, desenha a individualidade transgressora de Emma pouco a pouco, enfatizando a visão idealista de mundo da personagem, e seu inevitável desencanto com a realidade vil representada na figura do marido; a sua intolerância à mesmice rural, ao ponto de quase a enlouquecer, forçando uma transformação para o cenário urbano; a maternidade que sugere a perpetuação do feminino e, por conseguinte, a continuidade do sofrimento, da submissão ao macho; e ainda, temperando todo este histórico de infelicidades, a sua insatisfação sexual, acentuada durante todo o processo narrativo. Tudo isso misturado, produz no caldeirão flauberiano uma fórmula destinada ao clímax – que invariavelmente, acaba acontecendo. Da forma como foi a personagem foi concebida, fica claro para o leitor que a prioridade de Emma é viver segundo o que acredita. No momento em que percebe que não há como fazê-lo em conformidade com as convenções sociais, apesar de todo o seu esforço estilístico e emocional, Emma atinge um nível de descontentamento tal que resolve experimentar o amor numa situação adversa, isto é, à margem da convenção social. Não alcançando a felicidade com o casamento, vai procurá-la em outro lugar, e com outras pessoas.


Emma trai primeiro em pensamento, com um vizinho de sua casa da cidade (que na parte final da narrativa se tornará seu amante), para depois trair de fato, ao se render à lábia de um homem que Nelson Rodrigues chamaria carinhosamente de canalha. A passagem da primeira traição de Emma é propositadamente suavizada – e até contrastada – com o imaginário romântico da luz irradiante do fim de tarde, associada à preponderância da natureza (Parte II; Cap. IX). Não é gratuita a escolha do cenário: o ambiente natural proporciona uma ligação direta com a naturalidade do sexo, e do desejo correspondido. Resgatando a simbologia nietzschiana para o trágico, é como se as forças da natureza tomassem de assalto a consciência individual, inspirando um delírio coletivo, uma predominância da inconsciência, e sua conseqüente formação de imagens, de metáforas, que concedem uma atmosfera poética ao ato transgressor.


Pressente-se que o adultério, na concepção de Emma, não serve apenas como válvula de escape, mas como a afirmação de uma vontade – a de viver um amor segundo os seus desejos. O inconformismo de Emma com que ela considera uma falta de paixão em sua vida é condizente com o seu olhar romântico sobre o amor. O ideal perseguido, neste caso, parece inalcançável, uma vez que a continuidade do ato pressupõe uma convivência, os encontros são arranjados sempre furtivamente, e do mesmo jeito – de maneira que uma rotina acaba se estabelecendo, não obstante o fator não-convencional da relação. Além disso, não se levam em conta impedimentos como a família, e os vizinhos – e nem se poderia levar, já que o propósito de Emma é justamente fugir a essa realidade. Emma parece inverter mentalmente a sua percepção do que é real, isto é, ela representa um personagem para o seu marido, e procura ser ela mesma com seus amantes. A ficção é a sua vida conjugal, e a realidade é a sua natureza adúltera. É provavelmente daí que vem a necessidade de Emma de se manter permanentemente apaixonada, e quando seus parceiros não se sintonizam com essa paixão ela se sente mortalmente traída, de uma forma que ela não se sentiria se, por exemplo, Charles tivesse outra mulher.


Em seu íntimo, o que Emma gostaria de fazer é aliar sua vida cotidiana com as suas paixões, ou melhor, gostaria que as suas paixões fossem o seu cotidiano. O paradoxo neste desejo é tentar transformar a própria realidade num sonho constante. Entretanto, sabemos que o que acontece é exatamente o oposto: a força do dia-a-dia se impõe, sufocando as ilusões. Assim, o que Emma consegue é um homem “que faz amor com ela em dias específicos” e faz de sua entrega “mais um hábito” – ou seja, os adultérios de Emma acabam sempre numa variação da sua vida conjugal. O desejo deixa de ser alimentado pela distancia, pela aventura, pelo diferente, quando se cria uma rotina de ver sempre a mesma pessoa, e locais e horas sempre iguais. Emma pressente este esvaziamento do desejo, e o resultado disso é o desencanto – o que faz com que Emma retome a sua busca incessante pela satisfação de sua individualidade.


O amadurecimento da sua conduta adúltera simboliza uma escolha direta de Emma por si mesma. Junto com essa escolha, há também o desafio de alimentar continuamente o próprio ego com a experiência da alegria, do êxtase. Eis o ápice da tragicidade de Emma Bovary, que além de encarnar o arrebatamento, também o enfrenta. A recusa de Emma em renunciar à sua individualidade, a sua aspiração pela liberdade total, ao mesmo tempo em que a cega para a tristeza, cega também para o perigo. E, assim, tanto o sonho quanto a realidade fogem ao seu controle, e processo de seu aniquilamento tem inicio.


Abandonada pelos seus dois amantes, afogada em dívidas contraídas por conta de seu consumismo exacerbado, Emma começa a ver todas as suas máscaras ruírem. Nessa guerra de máscaras, a primeira sucumbir é a da sanidade moral, no momento em que sua tendência natural ao pecado é revelada aos olhos do senso comum; depois a da sanidade estética, ao se descobrir a depredação do patrimônio dos Bovary para sanar suas dívidas; e por último, diante da intolerável exposição e do conseqüente desaparecimento de toda a ilusão, cai a máscara da sanidade mental. Emma completa o seu ciclo trágico se transformando, literalmente, na imagem do pobre cego que grita diante dela numa de suas últimas idas à cidade (Parte III; Cap. V). O cego, neste caso, é uma imagem trágica poderosa, na medida em que priva a individualidade da luz, de todo conhecimento, como também de toda a liberdade. O cego é, também, a representação óbvia daquele que não integra, sob nenhum aspecto, a realidade que o cerca – apenas a imagina. Emma, portanto, assume este individualismo inconseqüente, escolhe a escuridão e, assim, caminha direto para o abismo.


Neste contexto, a morte de Emma não poderia vir de outra maneira, senão através da auto-destruição. Emma induz o filho do farmacêutico da cidade – um dos seus vizinhos mais próximos – a levá-la ao laboratório do pai e, uma vez lá dentro, toma uma quantidade generosa de arsênico. O jovem, que nutre um amor platônico por ela, não resiste ao erro, e quando percebe as intenções de Emma já é tarde demais. O aniquilamento físico da protagonista coincide com o esmorecimento moral que ela experimenta junto aos moradores da comunidade. De fato, Emma definha por dias, antes de morrer. Toda sua beleza vai-se esvaecendo, a sua imagem vai desaparecendo. Até que, perto do fim, Emma faz um pedido, aquele que serviria à sua morte, como lhe serviu em vida – o de se olhar, pela última vez, no espelho. Diante da imagem derradeira da sua individualidade, Emma suspira e morre, olhando, como sempre fez, apenas para si mesma.


O aniquilamento individual de Emma é mais que necessário, é inevitável – o sacrifício da personagem simboliza também o seu reconhecimento de que não há lugar para ela, não há máscara que a possa definir. O tempo da criação acabou. A resolução das dicotomias presentes na narrativa se confunde com a resolução de Emma. Afinal, ela representa, ao mesmo tempo, o embate entre campo-cidade, homem-mulher, ilusão-realidade. Uma vez aniquilada, todos esses conflitos se resolvem. Vencem a cidade, o homem, a realidade. Vence a normalidade. O final da narrativa é ilustrativo neste sentido quando a última cena do livro, após a morte de Charles (que pautou a sua existência na da mulher, e se foi junto com ela), é justamente a imagem da estabilidade da família do farmacêutico, o protótipo da adequação ao senso comum. Ou seja, na perspectiva cíclica do romance, como no ciclo trágico de Emma, tudo volta ao seu ponto de partida. E a partida, como não poderia deixar de ser, é um véu que escraviza uma massa de individualidades.


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