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PECADORES CONFESSOS...

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

MULHERES QUE PECAM N. 6 - HESTER PRYNNE



A obra-prima de Nathaniel Hawthorne, A Letra Escarlate, é como o proprio narrador faz questão de classificar, uma lenda. Uma historia de principios distorcidos, falsos profetas, aparencias, costumes. Uma historia de hipocrisia. Hester Prynne, a heroina romântica de Hawthorne, é uma mulher que se apaixona por um homem de uma comunidade na Nova Inglaterra e concebe uma menina, fruto dessa relação. Acontece que Hester é casada com Roger Prynne - um médico, pesquisador da cultura primitiva, que desaparece por dois anos e retorna justamente no momento em que a esposa está sendo julgada por adultério, tendo a prova do pecado encarnado no espírito indomesticado da criança, chamada Pérola. Roger Prynne percebe o poder que tem nas mãos pois, se revelar-se como o marido desaparecido, todos terão certeza da traição da mulher e sua pena será a execução. Hester, por sua vez, reconhece o marido na multidão e percebe que está em suas mãos. Desejando se aproveitar dessa vantagem, Prynne assume a identidade do médico Roger Chillingworth - para se manter sempre como a espada sobre a cabeça da esposa, e também descobrir quem é o seu amante. A partir daí, a vingança do marido ultrajado, a tortura psicológica, a chantagem contra a honra e reputação de Hester. A sociedade puritana dos primórdios da colonização da America do Norte é o cenário sócio-político desta história que fascina e prende o leitor do inicio ao fim.
Roger Prynne manda a esposa Hester sozinha para a Nova Inglaterra, e parte para suas pesquisas. Após dois anos esperando o marido, Hester já está integrada aos valores e costumes da comunidade que a cerca; todos a consideram viúva, já que o marido nunca dera noticias. Quando se descobre grávida e com o marido desaparecido, Hester é apontada como suposta adultera (já que não se tem certeza se o seu marido está morto) e estabelecida numa cabana afastada na floresta - e aqui encontramos a primeira referência ao aspecto lendário da trama. A mata, o bosque, ou "the woods", dentro da cultura anglo-saxonica, é o local do desconhecido, do proibido, ou do demoníaco. Neste sentido, Hester se ambienta num cenário suspenso da realidade, onde o certo e o errado não estão bem definidos - ou acredita-se não existirem. 
Quando o adultério é revelado, além de não se saber se Hester seria casada ou viúva quando o cometera, não se sabe também a identidade do seu perpetrante, isto é, o pai de Pérola. Na sociedade puritana, a pena para adultério é a morte; mas, uma vez que não se tem certeza do delito, a pena máxima não pode ser imposta. É então que entra em cena o emblema mais relevante da narrativa. Hester é condenada a usar uma espécie de broche com uma Letra "A" Escalarte pendurado no peito. "A" de adúltera; mas, segundo aprendemos com Hawthorne, A de intolerancia, de pobreza de espírito. As principais perguntas de Hawthorne são: qual o verdadeiro pecado? O olhar que enxerga a natureza humana deve estar carregado de essência, ou de aparência? Quais os valores que determinam o que é certo e o que é errado? Essas questões se incrementam ainda mais a partir do momento em que Hawthorne sinaliza quem é o homem que fornicara com Hester Prynne. Não coincidentemente, é Roger Prynne, na pele do médico Roger Chillingworth, que descobre que o amante da adultera Hester é o lider religioso local, Arthur Dimmesdale.
A relação entre Hester e o Reverendo Dimmesdale é uma iconização de papéis invertidos. Dimmesdale é um homem em quem os valores morais estão profundamente enraizados, até por força de sua função evangelizadora, e de sua liderança espiritual e política como representante máximo da Igreja Puritana na região. A sua vaidade é a sua reputação, a sua segurança é a sua respeitabilidade. Hester vem desestabilizar tudo isso - o papel da heroina é quase místico, ela é a tentação, o impasse. Sua altivez e beleza o impressionam; sua inteligência o fascina. Acima de tudo, sua firmeza de principios - que não necessariamente representam os principios da comunidade da qual participa. A integridade de Hester faz dela o ponto forte do casal; Dimmesdale, receoso de perder sua posição junto aos homens e a Deus, não assume nem para si mesmo suas emoções, não considerando puras as suas reações para com uma senhora casada.
Assim, temos o homem fraco e a mulher forte - e entre eles, a consumação do amor proibido no escuro da floresta, no leito de Hester. O pecado de Hester, no entanto, não é tanto o adultério, mas o que a descoberta deste provoca nas estruturas aparentemente estáveis daquela comunidade. Os pilares morais são chacoalhados; os preconceitos velados são expostos à luz do dia. Roger Chillinworth, que passa a clinicar usando o expertise adquirido pelas suas pesquisas, é chamado carinhosamente pelo narrador de "sanguessuga". Ele faz questão de deixar claro para Hester que pode expô-la a qualquer momento, e esta é a representação do poder masculino, patriarcal, que Hawthorne soma à sua lenda. É um poder sanguessuga, desgastante, pulverizador da virtude e do vicio, distorcendo ambos os conceitos. O amor de Hester e Dimmesdale tem uma fragilidade criada pelas limitações dos proprios personagens - ele, incapaz de renunciar à sua função de pastor; ela, incapaz de se libertar da sua funçao de esposa.
A letra escarlate se torna um símbolo, e um dilema, e uma representação da falibilidade humana. Naquela comunidade porém, há um símbolo ainda maior - a falibilidade e a leviandade da mulher. Hester é hostilizada, e sua filha Pérola frequentemente associada à criaturas místicas - o elfo, o demonio, o espirito selvagem. A justiça cega dos homens de bem concede a Hester o beneficio da delação premiada: para se livrar do estigma, ela deve dizer o nome do amante. Mas ela não diz. Sempre fiel a si mesma e ao homem que deve proteger dela, dele mesmo, daquela comunidade intolerante. Permanece calada, andando altiva pela rua com a criança maldita nos braços, portando a Letra Escarlate -  o símbolo da sua coragem, e também um modo de destacá-la das mulheres convertidas ao ostracismo e à submissão.
O sacrifício e a exposição de Hester não devolvem a Dimmesdale a dignidade, tão pouco a coragem. O Reverendo se esconde cada vez mais atrás da moralidade que profanara, e se flagela fisicamente. Só se redime no fim da historia, quando revela para toda a cidade que ele é o pai de Pérola, e morre do coração nos braços de Hester. Mais um elemento da lenda - a morte. O anti-herói deve morrer para se salvar. O sofrimento da heroina é parte de um ensinamento, de uma lição de vida. O coração é o simbolo da essencia, em detrimento da aparencia de normalidade que se tenta a todo custo manter.
Na conclusão da história, o narrador nos informa que Roger Chillinworth/Prynne morrera um ano depois da morte do Reverendo, deixando sua fortuna para Pérola. A riqueza de Hester e Pérola rende as duas uma mudança de tratamento na comunidade - impulsionada por uma mudança de interesses. Mas, mesmo assim, as duas vão embora. E tudo que se sabe delas são histórias, boatos. Pérola se torna quase uma figura etérea, uma fantamasgoria daquela sociedade. Até que um dia, uma idosa Hester retorna à Nova Inglaterra, sozinha.
Do alto de sua vivência, Hester se torna uma conselheira daquela comunidade, uma defensora das oprimidas, rechaçadas, das outras letras do alfabeto escarlate daquela comunidade. E por sua diferenciação, nunca deixou de usar o broche que lhe revelou. Impôs respeito por uma integridade, por uma decência completamente atípica, especial. Ao morrer, leva consigo a letra "A" - a primeira, a única pecadora universal - e por isso mesmo, a lenda.





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