Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros, mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me. (Dom Casmurro, cap. 32)
E qual teria sido o pecado de Capitu? O celebrado romance de Machado de Assis deixa essa, entre outras perguntas, deliberadamente não respondidas. Parece óbvio que essa não seja a questão central do romance Dom Casmurro, mas apenas o estopim para mais uma construção machadiana do painel social de sua época. Personas típicas da sociedade suburbana: o padre, a viuva, a familia, misturadas a aspectos mais psiquicos, a ingenuidade, a timidez contra o desprendimento, a vizinha como objeto do desejo, a repressão sexual, a descoberta do amor e do proibido, e a consumação de uma vontade mutua através da união quase pecaminosa entre Bentinho, o jovem apaixonado que mais tarde se transformará no amargo Dom Casmurro, e a sua Capitu. Porque quase pecaminosa? Porque sabemos nos primeiros capitulos que Bentinho estava prometido para a Igreja - sua mãe fizera a promessa de que se tivesse um filho que vingasse, ele seria padre. A atmosfera que ronda a união de Bentinho e Capitu é de malicia, e de maleficio, com o olhar inebriante da bela vizinha transgredindo o destino traçado pela família para Bentinho.
No entanto, há um interessante artificio na narrativa de Dom Casmurro que não pode ser negligenciado - o romance todo é construído sob a narração de um homem amargurado, um viúvo atormentado por uma dúvida que se tornou eterna. O Bentinho adulto, abandonado e triste, cercado pelos fantasmas de seu passado - que também são as principais imagens do painel social machadiano - adquiriu um modo particular de perceber os acontecimentos a sua volta, como também um estilo peculiar de contar as próprias memórias. Seu intuito é exorcizar seus demônios e, ao mesmo tempo, justificar sua amargura. Bentinho precisa dar sentido ao tormento que se tornou o centro de sua existência, o que restou dele mesmo. Por isso, ele precisa, de algum modo, ter razão. Assim, o olhar que empresta a sua narrativa procura sempre um tom acusador, acurado, certeiro. Mas o gênio machadiano empresta ao seu protagonista uma ambiguidade que o faz trair o próprio objetivo, através do incontrolável sentimento do ciúme - de tal maneira que Bentinho jamais consegue persuadir nem a si mesmo, nem ao leitor. A certeza nunca é alcançada. A amargura de Bentinho compromete a sua argumentação e consequentemente, o seu caso contra a esposa. E afinal, o que aconteceu entre Capitu e Escobar, melhor amigo de Bentinho? Capitu traiu ou não? Seu filho é do marido, ou não?
A narrativa começa pelo fim. Capitu e Escobar estão mortos, e Bentinho não é mais Bentinho. Ele agora é Dom Casmurro, um homem velho, ranzinza, sozinho, e remoendo uma pergunta que nunca será respondida, já que os acusados não mais existem. Bentinho se ocupa, portanto, do circunstancial, ou seja, procura traçar um perfil de Capitu que nem ele mesmo sabe se deve acreditar. E esse esforço nos leva a outra pergunta: Quem afinal era Capitu?
(continua)
Nenhum comentário:
Postar um comentário