Capa da 1ª Edição de "Drácula" |
Dando continuidade à nossa reflexão sobre Drácula, vamos falar da relação do Conde com os personagens femininos mais marcantes na trama criada por Bram Stoker. Embora seja minha intenção focar na influencia de Drácula sobre Mina Harker, não podemos esquecer da melhor amiga de Mina, Lucy Westenra, que se torna na primeira vítima do vampiro.
É importante salientar aqui a alta conotação sexual na relação entre Drácula e suas vítimas. Há quem considere Drácula o primeiro romance gay já escrito, por conta do interesse de Drácula em reservar o sangue de Jonathan Harker apenas para si, sem dividí-lo com as suas "noivas" no castelo. Em vez disso, proponho que o interesse de Drácula é, primordialmente, no corpo, no sangue, na juventude. Quando Drácula olha Jonathan, anseia pelo que já não possui. E quando diz que também pode amar não se refere, na minha interpretação, à Jonathan, mas à junventude que este representa - querendo dizer que ainda é capaz de demonstrar o amor, o sexo, o desejo, como se tivesse o corpo de Jonathan. Uma dica crucial neste ponto é analisar sua frase seguinte: "vocês mesmas sabem do meu passado". Um passado onde um dia ele amou. Um passado sem gênero, sobre o qual Stoker jamais nos esclarece. Mas ainda assim, uma lembrança de quando Drácula ainda não tinha o corpo decaído do presente narrativo.
A relação sexual propriamente dita se dá depois que Drácula localiza a noiva de Jonathan, Mina; e sua melhor amiga, a disputada Lucy, que no início da trama tem três pretendentes: Dr. John Seward, o Sr Quincy Morris e Lord Arthur Holmwood. Logo depois de aceitar o pedido de Holmwood, Lucy passa a ser assediada por Drácula, que se alimenta sistematicamente do seu sangue. A narrativa de Stoker não aprofunda os termos da sedução ou do poder de atração que Drácula exerce sobre Lucy. Mas fica clara a associação do desejo ao malefício, a satisfação do corpo ao custo da tortura da alma. A sugestão sexual entre Drácula e Lucy é mais explícita na parte do romance onde Mina presencia um dos ataques de Dracula ao corpo de Lucy. A descrição do momento é tensa e ambígua, feita sob o confuso ponto de vista de Mina. De forma que não é possivel saber o que exatamente Drácula fazia debruçado sobre Lucy no jardim à noite, como a própria Mina descreve. Seria que o beijo do vampiro foi mais longe?
A reprodução cinematográfica de 1992 confere à esta passagem duas respostas possíveis e de igual peso. No filme, Mina Harker (Winona Rider) procura por Lucy no jardim e a encontra, a principio, no meio do que parece ser um ato sexual com uma criatura incipiente, meio animalesca (Gary Oldman, em maquiagem assustadora), que percebe a presença de Mina. Num jogo chiaroescuro com a luz da lua, Mina alterna as visões de Lucy com este "ser" e de Lucy sozinha, como que numa crise de sonambulismo, murmurando palavras incompreensíveis. Depois que Mina consegue levar Lucy de volta a casa, a criatura aparece à espreita, observando as duas. A "ilusão" de Mina compõe a dúvida razoável deixada pelo livro, que corrobora também a imagem do vampiro de um ser com uma estranha capacidade de seduzir, usando e provocando as sensações do corpo em seu proprio beneficio. Também é sugestiva a necessidade do vampiro de beber o sangue, fluido essencial à vida, e também o fluido desperdiçado na defloração. Como todo predador, usa a arma que tem à mão. A arma de Drácula, quase sempre, é o sexo.
E Lucy é a primeira vítima dessa inocencia roubada, dessa súbita consciência do desejo. Seu corpo torna-se cada vez mais debilitado. Os esforços do Dr Seward, seu mentor Van Helsing e cia. de nada adiantam. Lucy se deixa seduzir sistematicamente por Drácula até "morrer", isto é, até seu corpo deixar de existir para o mundo. Esta é a parte interessante - Lucy se transforma numa vampira. O jeito espevitado da menina Lucy, que circula no imaginário masculino - representado em três pretendentes distintos que ela atrai para si - desenvolve-se em um poderoso apelo sexual , numa compulsão pela experiencia, e em novas deflorações. Não é à toa que os alvos dos ataques de Lucy são justamente as crianças - naturalmente inocentes, jovens e curiosos. A degradação da figura materna é fundamental na caracterização desta nova Lucy, que se prevalece de sua beleza angelical para inspirar confiança nas vítimas.
É importante entender a progressão na personalidade naturalmente livre de Lucy - primeiro, a brejeirice sedutora, mas inocente; depois, a sexualidade deflorada na sedução de Drácula. Já doente, Lucy assume o proprio vício e facilita o ataque fatal do Conde ao retirar de perto de si os amuletos plantados por Van Helsing. A "hipnose" praticada por Drácula não seria um meio de eximir Lucy (e por tabela, a mulher) deste descompromisso com a norma, e com a visão chauvinista do feminino? Entendo que sim. É mais fácil aceitar que Lucy não era dona de si quando decidiu se deixar seduzir por Drácula. Mais uma vez, a simbologia sexual por trás da figura do vampiro nos ajuda a entender a metáfora por trás do comportamento de Lucy - a curiosidade gerando voluptuosidade gerando o desejo e depois de morta, a necessidade. É uma mulher que assume uma independencia sexual incomum para a época do livro e do autor. O romantismo aqui é tanto egocentrico quanto idealista. Lucy constroi uma imagem de si mesma, sozinha, escolhe o proprio caminho. E paga caro por isso. Não coincidentemente é o noivo Arthur (ou a instituição, a norma) que extermina a vampira Lucy com uma estaca no coração. Mas não sem antes quase cair em sua "hipnose"...
Depois de Lucy, Drácula volta sua carga hipnótica para a esposa de Jonathan Harker. E aqui temos um novo tipo de "conexão" entre o vilão-protagonista e a doce Mina Harker. A sutileza de Drácula neste ataque é fundamental, já que se trata de uma mulher casada. A participação de Mina deve ser forçada, contra a sua vontade. De outra forma, seria adultério. Mas como isso é possível? A saída de Stoker é criar uma dependência telepática entre os personagens. Drácula morde Mina, mas faz com que ela beba o seu sangue e assim, torne-se mentalmente, "espiritualmente" ligada à ele. A total abstenção do corpo aqui é proposital para criar um contraste direto com o aspecto carnal na sedução de Lucy. Mina torna-se um instrumento pelo qual Dracula expressa o seu ódio. No livro, o vilão implacável persegue Mina depois de descobrir o plano dos homens para exterminá-lo. Mas, ao mesmo tempo, por que Mina? Não seria mais lógico vingar-se daqueles homens diretamente?
Voltamos ao filme de 1992 e o seu argumento original sobre a origem da maldade de Drácula. Ao considerar Mina a encarnação de sua amada Elizabeth, Drácula constroi com ela um amor poderoso, transcendental, e a cena do livro em que Drácula morde Mina é remodelada sob a perspectiva romantica. No filme, é Mina (Winona Rider) quem pede a Drácula (Gary Oldman) que a faça dele. Ela assume o desejo pelo vampiro e rechaça a sua hesitação em torná-la num ser como ele. E a verdade é que, se assumirmos o poder hipnótico de Drácula como uma arma de sedução, concluiremos que Mina se entrega ao Conde tanto quanto Lucy. Stoker mascara essa entrega no livro reforçando a sua malignidade, já que a motivação de Drácula é a vingança. Mas a leitura criada pelo filme não é de todo inverossímil. Apesar de fiel ao marido, a Mina do livro também está longe de ser uma criatura submissa, totalmente adepta às instiuições. Além de acobertar as escapadas noturnas de Lucy, Mina se comunica com ela atraves de cartas reveladoras, onde expressa por exemplo, o desejo de ver as mulheres tomarem a iniciativa de pedir os homens em casamento. Neste sentido, a cena do filme em que Mina toma a iniciativa de seduzir Drácula ecoa do pensamento original da personagem.
Tanto no filme quanto no livro, a conexão entre Drácula e Mina torna a caçada ao Conde mais viável, já que eles passam a usar os delírios telepáticos de Mina como guia para a localização de Drácula. E conseguem matá-lo, ao custo da vida de um de seus membros. A diferença é que no livro, Mina se livra da "maldição" de Drácula após sua morte e desfruta de uma traquila vida de casada com Jonathan Harker e o seu filho recém-nascido. A convencionalidade deste final é totalmente esquecida no filme - durante o qual uma Mina apaixonada rejeita o marido em favor de um amor bandido, carregando um Drácula ferido de morte para dentro do castelo do Conde, onde este morre em seus braços. O final do filme sugere o fim de um ciclo e o inicio de outro, onde Mina é aquela que espera pela reencarnação do amado. Novamente, se levarmos em consideração as ideias incipientes da personagem sobre o comportamento feminino, concluimos que com um pouco mais de coragem (ou um pouco menos de bom senso), Stoker poderia ter produzido um final para Mina semelhante ao do filme.
Mas considero que era importante ressaltar, dentro do romance, a maneira diferente como duas mulheres reagiam à feminilidade. Mina e Lucy eram contrapontos perfeitos da visão masculina do pensamento feminino - e assim, a sedução de Drácula torna a "fraqueza" da mulher mais evidente. Por outro lado, o texto de Stoker sugere uma vontade própria no comportamento dessas mulheres que, ainda que forçem a eliminação de uma e a submissão de outra, torna possível uma releitura dessas personagens numa época menos constrangedora à sua psique. Uma época como a nossa.
E Lucy é a primeira vítima dessa inocencia roubada, dessa súbita consciência do desejo. Seu corpo torna-se cada vez mais debilitado. Os esforços do Dr Seward, seu mentor Van Helsing e cia. de nada adiantam. Lucy se deixa seduzir sistematicamente por Drácula até "morrer", isto é, até seu corpo deixar de existir para o mundo. Esta é a parte interessante - Lucy se transforma numa vampira. O jeito espevitado da menina Lucy, que circula no imaginário masculino - representado em três pretendentes distintos que ela atrai para si - desenvolve-se em um poderoso apelo sexual , numa compulsão pela experiencia, e em novas deflorações. Não é à toa que os alvos dos ataques de Lucy são justamente as crianças - naturalmente inocentes, jovens e curiosos. A degradação da figura materna é fundamental na caracterização desta nova Lucy, que se prevalece de sua beleza angelical para inspirar confiança nas vítimas.
É importante entender a progressão na personalidade naturalmente livre de Lucy - primeiro, a brejeirice sedutora, mas inocente; depois, a sexualidade deflorada na sedução de Drácula. Já doente, Lucy assume o proprio vício e facilita o ataque fatal do Conde ao retirar de perto de si os amuletos plantados por Van Helsing. A "hipnose" praticada por Drácula não seria um meio de eximir Lucy (e por tabela, a mulher) deste descompromisso com a norma, e com a visão chauvinista do feminino? Entendo que sim. É mais fácil aceitar que Lucy não era dona de si quando decidiu se deixar seduzir por Drácula. Mais uma vez, a simbologia sexual por trás da figura do vampiro nos ajuda a entender a metáfora por trás do comportamento de Lucy - a curiosidade gerando voluptuosidade gerando o desejo e depois de morta, a necessidade. É uma mulher que assume uma independencia sexual incomum para a época do livro e do autor. O romantismo aqui é tanto egocentrico quanto idealista. Lucy constroi uma imagem de si mesma, sozinha, escolhe o proprio caminho. E paga caro por isso. Não coincidentemente é o noivo Arthur (ou a instituição, a norma) que extermina a vampira Lucy com uma estaca no coração. Mas não sem antes quase cair em sua "hipnose"...
Depois de Lucy, Drácula volta sua carga hipnótica para a esposa de Jonathan Harker. E aqui temos um novo tipo de "conexão" entre o vilão-protagonista e a doce Mina Harker. A sutileza de Drácula neste ataque é fundamental, já que se trata de uma mulher casada. A participação de Mina deve ser forçada, contra a sua vontade. De outra forma, seria adultério. Mas como isso é possível? A saída de Stoker é criar uma dependência telepática entre os personagens. Drácula morde Mina, mas faz com que ela beba o seu sangue e assim, torne-se mentalmente, "espiritualmente" ligada à ele. A total abstenção do corpo aqui é proposital para criar um contraste direto com o aspecto carnal na sedução de Lucy. Mina torna-se um instrumento pelo qual Dracula expressa o seu ódio. No livro, o vilão implacável persegue Mina depois de descobrir o plano dos homens para exterminá-lo. Mas, ao mesmo tempo, por que Mina? Não seria mais lógico vingar-se daqueles homens diretamente?
Voltamos ao filme de 1992 e o seu argumento original sobre a origem da maldade de Drácula. Ao considerar Mina a encarnação de sua amada Elizabeth, Drácula constroi com ela um amor poderoso, transcendental, e a cena do livro em que Drácula morde Mina é remodelada sob a perspectiva romantica. No filme, é Mina (Winona Rider) quem pede a Drácula (Gary Oldman) que a faça dele. Ela assume o desejo pelo vampiro e rechaça a sua hesitação em torná-la num ser como ele. E a verdade é que, se assumirmos o poder hipnótico de Drácula como uma arma de sedução, concluiremos que Mina se entrega ao Conde tanto quanto Lucy. Stoker mascara essa entrega no livro reforçando a sua malignidade, já que a motivação de Drácula é a vingança. Mas a leitura criada pelo filme não é de todo inverossímil. Apesar de fiel ao marido, a Mina do livro também está longe de ser uma criatura submissa, totalmente adepta às instiuições. Além de acobertar as escapadas noturnas de Lucy, Mina se comunica com ela atraves de cartas reveladoras, onde expressa por exemplo, o desejo de ver as mulheres tomarem a iniciativa de pedir os homens em casamento. Neste sentido, a cena do filme em que Mina toma a iniciativa de seduzir Drácula ecoa do pensamento original da personagem.
Tanto no filme quanto no livro, a conexão entre Drácula e Mina torna a caçada ao Conde mais viável, já que eles passam a usar os delírios telepáticos de Mina como guia para a localização de Drácula. E conseguem matá-lo, ao custo da vida de um de seus membros. A diferença é que no livro, Mina se livra da "maldição" de Drácula após sua morte e desfruta de uma traquila vida de casada com Jonathan Harker e o seu filho recém-nascido. A convencionalidade deste final é totalmente esquecida no filme - durante o qual uma Mina apaixonada rejeita o marido em favor de um amor bandido, carregando um Drácula ferido de morte para dentro do castelo do Conde, onde este morre em seus braços. O final do filme sugere o fim de um ciclo e o inicio de outro, onde Mina é aquela que espera pela reencarnação do amado. Novamente, se levarmos em consideração as ideias incipientes da personagem sobre o comportamento feminino, concluimos que com um pouco mais de coragem (ou um pouco menos de bom senso), Stoker poderia ter produzido um final para Mina semelhante ao do filme.
Mas considero que era importante ressaltar, dentro do romance, a maneira diferente como duas mulheres reagiam à feminilidade. Mina e Lucy eram contrapontos perfeitos da visão masculina do pensamento feminino - e assim, a sedução de Drácula torna a "fraqueza" da mulher mais evidente. Por outro lado, o texto de Stoker sugere uma vontade própria no comportamento dessas mulheres que, ainda que forçem a eliminação de uma e a submissão de outra, torna possível uma releitura dessas personagens numa época menos constrangedora à sua psique. Uma época como a nossa.
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