Esta edição, dividida em duas partes (talvez três) será dedicada a três figuras femininas das mais fortes e que postulam grande parte do imaginário criado em torno da personalidade da mulher, sobretudo na cultura ocidental e paternalista. É muito significativo que duas delas possuam o mesmo nome, e que todas compartilhem estigmas de conduta e pensamento. Mas este blog fala de personagens femininas literárias. Então, por que inseri-las? Porque a verdade é que, embora a idéia geral seja de que pelo menos duas delas tenham vivido nos primórdios de nossa civilização – e por “nossa civilização”, entenda-se a civilização ocidental cristã – não podemos afirmar se elas existiram da maneira como são retratadas nos livros da maior obra literária de todos os tempos – a Bíblia Sagrada. Estamos falando, respectiva e cronologicamente de Eva, a primeira mulher; Maria, a Virgem-Mãe; e Maria, a Madalena, discípula controversa de Jesus Cristo.
Primeiro livro a ser impresso na era moderna, é preciso entender que a Bíblia constitui uma série de livros escritos por homens influentes, encarregados de fundar e solidificar os dogmas e preceitos de uma religião monoteísta, capaz de conquistar, pela fé ou pela força, fiéis dos vários credos existentes quando do surgimento do cristianismo. Era preciso viabilizar uma criação estética que servisse como uma base ideológica consistente, como também útil à sociedade que se desenhava, e aos poderes que a representavam. Ora, nenhuma sociedade em formação se estratifica sem um poder conciliador forte, inconteste. A Igreja - católica, protestante, ocidental ou oriental, quaisquer que seja a seita que represente – é e sempre será este a herdeira natural deste tipo de poder. Nenhum governo laico conseguiu unir mais determinado povo do que sua cultura, e sua religião.
Assim, o cristianismo latente precisava de um norte, um guardião de dogmas intricadíssimos, algumas vezes até contraditórios – e ainda assim, capazes de cativar, catequizar o maior número de adeptos. O papel de cada casta, credo, e principalmente, o papel de cada sexo precisava ser definido sob uma ordem mística, agregada em torno de uma figura onipotente, universal. Por isso, o texto bíblico precisava ser sedutor, atrair a maioria e assim, neutralizar a minoria, ou a maioria que não interessasse. Não é preciso dizer que o sexo feminino, neste contexto, constituía uma ameaça ao estabelecimento dessa ordem em formação. O cristianismo, na visão patriarcal incipiente, não precisava de deusas, sacerdotisas, sábias, de personalidades contestadoras. Elas já povoavam grande parte das seitas politeístas que existiam. Era preciso um poder simétrico, igualmente forte.
A mulher já tinha um poder que o homem jamais teria: o da maternidade. A mulher gera a vida, e isso tem uma carga inominável de responsabilidade, poder, como também de erotismo. A mulher atrai o parceiro, intencionalmente: precisa dele para procriar. O ato sexual faz parte do ato de procriação. È o ciclo feminino, o ciclo lunar, o ciclo das marés, que determina as variantes dessa atração que a mulher exerce sobre o corpo masculino. A mulher, portanto, tem uma ligação com a natureza poderosa, mas, sobretudo, perigosa. A mulher é perigosamente útil. Afinal, é preciso perpetuar a espécie e assim, perpetuar também a cultura, os ensinamentos, os dogmas, as regras sociais. Desse modo, a mulher é ao mesmo tempo, um bem e um mal. É uma força que para servir, precisa estar sob absoluto controle. È aí que entra a nossa trindade bíblica feminina. Ou pelo menos, esta é a “leitura” dessa modesta blogueira.
A nossa proposta aqui é considerar que essas mulheres foram construídas, tiveram suas estórias envoltas numa roupagem estética conveniente a determinada corrente cultural. Seriam, neste sentido, personagens. É preciso lembrar que um livro, por mais biográfico que seja, é sempre uma criação, uma seleção de fatos, uma narração de acordo com a mente, a percepção, e o interesse daquele que escreve. Possui, desta forma, um caráter ficcional particular. Aqueles que compuseram a Bíblia não podiam fugir disso. A idéia geral é a de que o “olhar” sobre o qual aquelas estórias foram narradas pertenceria a um ser divino superior, criador de todas as coisas. Mas não é o ser humano a Sua imagem e semelhança? Possuidor, portanto, de um olhar próprio, concedido por essa mesma divindade? Será que é possível abdicar tão completamente de si mesmo? Será que é possível partilhar esse olhar especial de forma que o nosso próprio olhar se esvaeça? Será que é preciso alienar o humano para ascender ao divino? E se fosse? Podemos afirmar que esse era o único espírito do qual aqueles que selecionaram, ou ainda escreveram os livros do Grande Livro, estavam imbuídos?
Responder estas perguntas geraria discussões intermináveis. Não é esse o objetivo. O que queremos é fornecer um ponto de vista, uma leitura mesmo, dessas mulheres conforme elas são descritas na narrativa bíblica. Não é nossa pretensão descobrir a verdade – tudo o que podemos fazer diante de uma crença enraizada, culturalizada, é especular. Além disso, acreditamos em Nietzsche quando ele diz que a verdade é uma construção tão elaborada quanto a mentira. Acreditamos acima de tudo em Deus, isso não é algo que se pode mudar. Apenas o argumento aqui é que o divino é uma coisa, o sagrado é uma coisa, e a religião pode ser outra coisa diferente. É possível pertencer sem abandonar o espírito crítico; como também, só se pode criticar, construtivamente ou não, aquilo no qual se está inserido. Não se pode analisar o que não se conhece. Então, vamos fazer aquilo que já vínhamos fazendo: engendrar a nossa visão, humana, parcial e direcionada para os aspectos em perspectiva neste blog: a mulher, o pecado, a literatura. Sou uma mulher que comeu da árvore do conhecimento, está na minha gênese o discernimento, a aceitação e a revolta. O que nos lembra a personagem do nosso próximo post. Siga-nos.
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