Em contraponto ao mito de Eva, temos a incontestável figura de Maria, a mulher que concebeu imaculada o Deus-homem. Maria não é uma deusa, mas o que a cultura cristã chama de "santa", um ser humano iluminado, tocado com o desígnio do Divino, destacado para uma missão que exige uma fé incondicional. Maria talvez seja a única figura feminina da Bíblia no qual se exercita inteiramente essa total contemplação do divino, esse êxtase missionário que é também uma sublimação da fé.
"Faça-se". Com essas palavras Maria autoriza o anjo a invadi-la com o Espírito Santo e assim, entrega seu corpo intocado à concepção do Salvador. A força dessa passagem bíblica dentro do inconsciente coletivo é extraordinária - denota um total desprendimento, um abandono da curiosidade, do desejo e de qualquer ambição maior. Maria não ambiciona o divino; ela se torna o seu instrumento. Por sua propria escolha, Maria recusa sua natureza-MULHER, resumindo-a inteiramente à sua natureza-MÃE. Sim, Maria é o pressuposto da maternidade, o maior poder que o feminino pode impor ao homem. A mulher que gerou o Cristo, no entanto, não poderia ser uma discípula de Eva. Maria tinha de ser, por força do dogma cristão, um duplo perfeito do mito da primeira mulher.
E ainda assim, há que se considerar. Maria tinha um pretendente humano, José. Como explicar a ele uma gravidez imaculada? Como explicar à sua comunidade? Era preciso uma dose de coragem para assumir diante de todos o que poderia ser entendido mais facilmente como pecado. É interessante a narrativa bíblica para Maria, contraditória e sutil. A personagem é construída em torno do poder da maternidade e da criança que seria trazida ao mundo; também em torno do poder do divino, e da imensurável fé da virgem para suportar a desconfiança alheia. É importante dizer, neste momento, que o ritual cristão não é o único em que o deus escolhe a virgem para o sacrificio da concepção e o desafio de carregar a herança divina. O incubo (união de um ser humano com um ser divino) é bastante comum nos mitos gregos, onde os deuses descem à Terra para seduzir belas jovens e nelas, conceber seus olimpos. A concepção de Helena de Tróia, por exemplo, é o resultado da sedução de Zeus à jovem Leda. Curiosamente, o poder de Zeus também é representado por um pássaro - um cisne, ao invés da pomba cristã.
Ao contrário da lenda grega, a história cristã obedece à propósitos específicos. Maria é claramente desenhada para ser um modelo virtuoso para o feminino, um exemplo a ser seguido. Não sabemos o quanto de influencia ela efetivamente exerceu sobre o menino Jesus, porque as menções da Bíblia à figura de Maria são pontuais, e escassas. A ideia principal sobre Maria é associá-la à maternidade e ao casamento espiritual, onde o apelo da carne é secundário ou melhor ainda, inexistente. A pena masculina aparece marcada na caracterização de Maria: subserviente, discreta, serena, sublime mesmo. E obviamente, coadjuvante da trajetória do Deus-Pai e do Deus-Filho.
Julia Kristeva afirma em O Feminino e o Sagrado (2001), que a Virgem Maria, por sua aceitação da maternidade, é uma poderosa representação do sagrado feminino, independente do que é facultado a ela na narrativa cristã. Segundo Kristeva, a Virgem simboliza a total consciencia do poder materno, a maternidade aqui servindo como ingerência da vida, do tempo. A mulher vive no limite de uma incongruencia entre o tempo que ela dispõe e administra através da geração da vida, e o espaço a ela reservado no cotidiano. O poder de Maria, a decisão de Maria, a influencia de Maria sobre Cristo, tudo é apontado por Kristeva como indicativo de força através da sabedoria, serenidade, ao invés do controle extático exercido por Eva.
O olhar feminino sobre a Virgem Maria é importante para percebemos, mais uma vez, as lacunas na narrativa bíblica dos personagens femininos. A natureza feminina é deturpada, omitida, ou delimitada segundo os padrões do dogma. Não sabemos até onde Maria determinou a caminhada de Jesus - nos evangelhos do Novo Testamento, o relacionamento de Maria com o filho não é um foco. Não temos uma percepção clara, por exemplo, da infância de Jesus, sobretudo após a morte de José. O evangelho, até por seu objetivo catequizador, se concentra no Jesus adulto, já se conscientizando da sua missão, como também do seu proprio sacrifício.
Como um toque final ao mito da Virgem, o fim de Maria corresponde à sua total sublimação. Depois de sublimar o corpo, Maria ascende ao Pai, e a narrativa de sua morte é ambigua, completamente simbólica. É como se Maria, através da negação de sua individualidade, abandonasse por completo a sua condição humana, e se tornasse apenas espírito. E embora a Bíblia não dimensione a importancia de Maria na trajetoria de Cristo, o fato de tê-Lo concebido confere a ela um lugar de destaque na tradição cristã. A Virgem é a intercessora natural dos pecados do mundo diante do Criador. Por sua condição ambivalente: humana destacada da impurezas do mundo, progenitora do filho de Deus - ela entende o pecado e procura limpá-los da alma dos ímpios. É a figura feminina forte, permanente da qual a religião faz uso para neutralizar o efeito Eva na personalidade feminina. Mas, é também uma representação da força da natureza numa mulher, de um poder que lhes foi concedido e não lhes pode ser tirado. Mais uma vez, apesar do objetivo castrador do mito de Maria, o seu poder permanece no seio materno, e insiste na personalidade feminina pela tolerancia e pela consciencia, ao invés do extase.
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