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sábado, 24 de julho de 2010

Os monstros de Nelson Rodrigues

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“Eu não quis esquecer, eu não quis fugir, eu não tive medo nem vergonha de nada. Não botei meus filhos no mundo para dar a outra mulher!” (Senhorinha – ato III)


Album de Familia: uma tragédia em três atos foi a terceira incursão de Nelson Rodrigues pelo teatro, e talvez a mais polêmica. Foi encenada pela primeira vez em 1945, censurada em 1946 e só voltou a ser lida 19 anos depois. O motivo? Uma “rajada de monstros” espalhada pelo palco, como o próprio Nelson gostava de definir. A peça gira em torno de retratos da vida de uma família durante 26 anos, nem tanto contrapondo imagem e realidade, mas chocando pela perspectiva grotesca e surreal. É uma familia enquanto estrutura social, mas esta contrasta diretamente com a estrutura emocional de seus membros que, a rigor, não existe. Tudo é exacerbado, cru, quase dionisíaco – e absurdamente proposital.

Vamos focar, como não poderia deixar de ser, nos personagens femininos. Mas o nosso objetivo, de certa forma, vai de encontro ao desenvolvimento do texto rodrigueano – porque no nosso entender, grande parte da ação relaciona-se com a atração e a repulsa que os personagens femininos exercem sobre os masculinos. É um ambiente em que o corpo feminino protagoniza grande parte do conflito – sobretudo nas relações familiares em cheque. O corpo, o desejo, e o sexo são explorados pela intimidade da mulher – e de forma a se enxergar a natureza na sua forma rude, fundamental: macho e femea, instinto e cio.

Há três personagens femininas destacadas na trama de Album de Familia: a matriarca, D. Senhorinha, sua irmã Rute e sua filha, Gloria. O que se repara imediatamente é que Rute e Gloria tem relação direta com Senhorinha – e veremos que essa relação determina a construção emocional de ambas as personagens. Observa-se que a ação parte, basicamente, do comportamento da matriarca – e isso se confirma na primeira cena da peça, no primeiro retrato do album, que traz os recem-casados Senhorinha e Jonas. De acordo com as direções da peça, Senhorinha posa “com um riso falso e cretino”, enquanto o narrador exalta  “a timidez da jovem nubente”. A foto é tirada em 1900, logo após o casamento, quando Senhorinha tinha apenas 15 anos de idade – o que, mais adiante, prova ser uma bela inferência sobre as preferências sexuais de seu marido.

A inferência, também, é a de que Senhorinha, desde muito jovem, é dona de um cinismo calculado, e que a sua declarada timidez é um embuste, uma forma de conciliar a sua vaidade com o seu papel de esposa. Essa vaidade é uma característica determinante na personalidade da protagonista, e incita o ódio de Rute e Glória. Esse odio ganha um reforço, no mínimo, pouco ortodoxo, e é aí que começa a escalada da monstruosidade psiquica nos personagens de Rodrigues. O reforço, que íamos falando, reside no objeto de desejo de Rute e Glória, que é ninguem menos que Jonas, marido, cunhado e pai, nessa ordem.

É importante entender que Album de Familia é um exercicio – profundamente rustico – da teoria freudiana sobre o amor, aquela que fundamenta os famosos Complexos de Édipo e de Electra. Em outras palavras, o que temos na peça é a encenação da atração física fundamental, daquilo que, de acordo com Freud, é a primeira experiencia sexual de toda criança – a relação com os pais. Segundo Freud, as preferencias amorosas e/ou sexuais de um individuo (amor e sexo para Freud nem sempre andam juntos) dependem da forma como este individuo sublima – ou não – o seu desejo pela mãe ou pelo pai. Em Album de Família, tal sublimação não existe. Os personagens exercitam o amor, o odio e o desejo entre si.

De maneira que, enquanto Gloria deseja o pai (e este a deseja de volta), Senhorinha é profundamente atraída pelos três filhos: Guilherme, Edmundo e Nonô. E a ciranda do amor primitivo entre os personagens se complica ainda mais, quando percebemos que Guilherme é apaixonado pela irmã mais nova, e tenta a todo custo afastá-la do pai, a quem odeia. Senhorinha, por outro lado, considera a filha uma rival no amor de Guilherme, enquanto seduz Nonô e estimula a paixão de Edmundo por ela. E ainda temos Rute, na personificação clássica da inveja, aquela que culpa a irmã pela propria frustração, e pela profunda carência emocional. Rute e Jonas tem um relação de dependencia e humilhação: Jonas tirou a virgindade de Rute numa noite em que estava bebado, despertando uma paixão unilateral na cunhada, que passa a aliciar meninas pré-adolescentes para satisfazer a voracidade sexual do marido de Senhorinha.

As fotos do album de família vão se somando ao passar do tempo, o narrador cada vez mais sarcástico enxerga placidez e linearidade nas expressões visivelmente perturbadas dos personagens. Pais e filhos seguem desorientando as proprias psiques, deturpando suas emoções. Glória enxerga Jonas no quadro  de Nosso Senhor, numa alusão à reverencia da filha pelo pai; e ainda confessa que nunca gostou da mãe. Edmundo, por outro lado, diz que a mãe é uma santa, e sugere matar o pai para fugir com ela – o que o tornaria o típico Édipo sofocliano, não fosse a cumplicidade velada de Senhorinha no crime que não chega a acontecer. O ex-seminarista Guilherme sequestra Glória e tenta faze-la ir embora com ele, para longe do Todo-Poderoso Jonas. Electra, isto é, Gloria, não se deixa tocar pelo irmão e reafirma a sua fixação pelo pai.

O resultado desta interação peculiar é a trágedia aludida no titulo.  Nonô, após uma noite de sexo com a mãe, enlouquece: passa a andar nu e a agir como um macho em eterno cio, uivando e gritando pelos tres atos da peça; Após ser rejeitado, Guilherme mata Glória com dois tiros; Edmundo se mata, depois de ouvir da mãe que ela o traira com o irmão mais novo. Rute, cada vez mais amargurada e ressentida, vai embora sem destino certo.

Assim, fica a impressão que a maior influencia da peça é mesmo a matriarca da família. Senhorinha, com toda sua beleza madura, não consegue manter o desejo do marido, que procura em outras meninas a satisfação sexual que só teria com a propria filha. Na falta de uma figura romantica masculina, Senhorinha constroi uma obsessão sexual pelos filhos homens, e despreza completamente quem não lhe desperta o interesse erótico. Quando finalmente enfrenta Jonas, dispara: “Eu não quis esquecer, eu não quis fugir, eu não tive medo nem vergonha de nada. Não botei meus filhos no mundo para dar a outra mulher!” (ato III). E diz a Jonas que a ele, só deve os filhos homens que ele lhe deu. Ainda usando a teoria freudiana, diríamos que a fala de Senhorinha é a expressão de uma mulher movida por um “id” irrestrito. A ambientação da peça – Jonas é fazendeiro no interior – ajuda a compor a atmosfera rudimentar, o cheiro de mato, os animais, a simplicidade dos nativos, indicando talvez a falta de referencia civilizadora.

No entanto, o egocentrismo de Senhorinha é sugerido por Rodrigues desde o inicio. O comportamento dos outros personagens decai a medida que se deterioram os sentimentos entre eles – e todo esse processo inclui, de alguma maneira, a matriarca da família. A relação sexual com Senhorinha transforma Nonô na imagem da incivilidade; ao se descobrir traído (embora não saiba a identidade do amante), Jonas desperta sua pulsão sexual de forma anormal e vexatória, já que ele traz meninas para dentro de casa; provoca, com isso, o aumento do odio de seu filho Edmundo por ele; e afasta Guilherme e Glória de casa.

No final, Senhorinha mata Jonas durante o velorio de Gloria e Edmundo, e Jonas morre ao pés do caixão da filha. Senhorinha vai ao encontro de Nonô, segundo ela, para sempre. O Album de Familia de Nelson Rodrigues se fecha, e a sua femea fundamental desaparece, restaurando de maneira catartica a sanidade da plateia. É a tragédia restabelecendo o juízo de valor, a moral e o tabu dentro do seio da unidade social elementar. Freud explica?

Referencia ao livro:
FREUD, Sigmund. A Psicologia ao Amor. Penguin, 2000.
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Um comentário:

Zé Carlos disse...

Claudinha, vc é uma querida.

Te desejo um lindo domingo e um beijo enorme..... ZC

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