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PECADORES CONFESSOS...

terça-feira, 6 de julho de 2010

Engraçadinha - a Lolita de Nelson Rodrigues


A trama de Asfalto Selvagem, ou Engraçadinha – seus amores e seus pecados, é um tango clássico, uma drama folhetinesco extremo. Engraçadinha – nome, apelido, ou ironia subjetiva, já que de engraçadinha ela não tem nada – é uma adolescente vaidosa, sarcástica, e com um olhar profundamente cruel daqueles que a cercam. Tem uma consciência precoce da própria sexualidade, uma total admiração por si mesma. Manipula calculadamente o pai, as tias mais velhas, o tio pedante, o padre, os primos. É a ninfa rodriguiana fundamental – atrai, seduz e destrói.

A historia de Engraçadinha se divide em dois livros, que cobrem períodos distintos de sua vida. O primeiro livro conta a vida de Engraçadinha dos 12 aos 18 anos. O segundo livro mostra Engraçadinha depois dos 30 anos. O contraste entre a Engraçadinha jovem e a madura é que mostra o grau de frustração com que Rodrigues constrói sua protagonista feminina. A Engraçadinha jovem é petulante, aventureira, e dona de uma vontade primitiva, um desejo irrestrito que ela faz questão de extravasar.

Engraçadinha, então com 18 anos, seduz o primo Sílvio na noite da sua festa de noivado com uma outra prima, Letícia. Depois do ato consumado, determina-se a separar Silvio de Letícia, afirmando à prima que está grávida do rapaz. Leticia abre mão do noivo para que ele se case com Engraçadinha – numa passividade quase altruísta. Mas quando o pai de Engraçadinha fica sabendo do imbroglio, o mundo da moça começa a ruir. Começam então as revelações e os desentendimentos que precipitam dissimulações, perversões e maldades. Aliás, todo o texto é construído a partir do artificio da dissimulação - os personagens jamais falam o que pensam, e tanto pensamento quanto argumento são narrados. No discurso, a articulação que pressupõe o normal, o óbvio. No pensamento, no íntimo, é que estão todas as obscenidades, todas as farpas.

Uma dissimulação vem à baia apenas com o objetivo de restabelecer a ordem "natural' das coisas: ao saber do envolvimento de Engraçadinha e Silvo, Seu Arnaldo, pai de Engraçadinha, confessa que Sílvio não é seu sobrinho, e sim seu filho, fruto de uma única tarde de sexo entre ele e a esposa de seu irmão. Rodrigues constrói uma trama cíclica, uma propensão à traição entre membros da mesma familia – tanto o adultério de Seu Arnaldo, quanto o incesto entre Engraçadinha e Silvio ocorrem no mesmo lugar – no divã da biblioteca da casa. Os dois casos resultam em filhos bastardos – o próprio Silvio e mais tarde, o único filho homem de Engraçadinha (que a principio inventa a gravidez, mas depois descobre que está mesmo grávida). Pai e filho desejam e possuem mulheres que não deveriam, rendendo-se ao desejo e à culpa: Arnaldo não se perdoa por ter traído o irmão, que morre antes que a gravidez da esposa venha à tona; Silvio não se conforma em perder Letícia e se divide entre a paixão por Engraçadinha e o amor assexuado pela noiva.

Silvio chega inclusive a confundir as duas: no escuro do quarto de Engraçadinha uma noite, Leticia dorme na cama da prima e acaba atacada por Silvio, enquanto Engraçadinha assiste a tudo deitada no chão. Quando sabe da confusão, Silvio excita-se ao ponto de combinar com as duas primas o mesmo encontro, na noite seguinte: Silvio dormiria com uma na presença da outra; Engraçadinha, já ciente de seu parentesco com Silvio, aceita o desafio de assistir seu amado fazer sexo com outra, já que não pode, em nome da normalidade, fazer sexo com seu irmão.

O triangulo entre Leticia, Engraçadinha e Silvio toma um forma inesperada, e precipita uma das discussoes recorrentes da obra rodriguiana: normalidade x monstruosidade ou por outra, a monstruosidade por trás da normalidade. Até que ponto o código moral estabelecido determina a pervesão, a maldade e a loucura? Leticia ama Engraçadinha, que ama Silvio, que ama as duas, de maneiras completamente diferentes. O amor de Leticia por Engraçadinha não é normal, segundo a moral vigente; o amor de Engraçadinha por Silvio seria normal, mas é proibido, também segundo a norma vigente. E como é que Silvio pode amar duas mulheres ao mesmo tempo e ainda, sugerir transar com uma enquanto a outra assiste? "Não existe coisa mais bonita do que ver o ser amado traindo", afirma.  Os sentimentos não são estabelecidos e nem definidos; portanto, não tem limites. Ser amado e ser traído, ter amor e ter ódio, tudo é posto em absoluta perspectiva. "Tudo é detalhe", diria Seu Arnaldo.

Leticia, a prima traída, demonstra um interesse obssessivo por Engraçadinha. Magra demais, pálida demais, Letícia é o exato oposto de Engraçadinha - destituída da feminilidade da prima mas, com uma força animal, poderosa, positivamente masculina - capaz de medir forças com o tio para defender Engraçadinha; ou de enfrentar o noivo para que ele assuma o filho que fez na prima; ou ainda, de beijar Engraçadinha na boca, à força.  Alguem que pode submeter-se a um triangulo amoroso para satisfazer o desejo heterossexual da prima. Leticia é a personagem cuja frustração se transforma na afirmação de uma homossexualidade reprimida, na libertação de um ser que lutava contra si mesmo. No segundo livro - que conta a historia dos personagens após os 30 anos - a Leticia introvertida, sem brio, que andava à sombra de Engraçadinha, se transforma numa mulher independente, que assume e busca satisfazer o proprio desejo. E busca ainda a vingança, ao tentar seduzir Silene, a filha mais nova de Engraçadinha.

A Engraçadinha adulta, no entanto, é o resultado de uma frustração que se instaura de maneira traumática: mesmo depois de descobrir que é irmão de Engraçadinha, Silvio faz sexo com ela no mesm local onde ela o seduziu. Mas depois do ato, Silvio decepa o seu órgão sexual com uma navalha, e definha num hospital sangrando até morrer - apodrecendo assim a própria carne. A mutilação do falo é a mutilação da sexualidade, da voluptuosidade, e do desejo; é a morte do pecado, que transpira pelos poros da jovem Engraçadinha. O grito da jovem Engraçadinha na última parte do primeiro livro é o canal pelo qual se extingue toda a força, toda a energia, e toda e qualquer voluptuosidade. Como a Lolita de Nabokov, Engraçadinha enterra o proprio desejo, se entrega a um casamento insosso com Zózimo, seu noivo na juventude - um homem apático e desprovido de qualquer virilidade - e se converte a normalidade mais abjeta - o dia-a-dia, o fanatismo religioso, a hipocrisia. Com o marido só faz sexo no escuro, e totalmente vestida.

Tem com Zózimo quatro meninas. O menino mais velho, Durval, é filho de Sílvio - e é o preferido da mãe. A menina mais nova, Silene, de 14 anos, tem a mesma volúpia da jovem Engraçadinha. Durval e Silene tem uma relação de carinho mútuo, e por vezes, obssessivo. Novamente a trama cíclica - mas desta vez, o incesto é inconsciente, involuntário. "Dona" Engraçadinha vive com os fantasmas do seu passado - um deles, a prima Leticia, agora rica e senhora de si, se materializa e tenta abusar sexualmente de Silene para se vingar de Engraçadinha. Vive em total letargia - até renascer ao arrumar um amante. Uma paixão que, por força de sua necessidade de auto-punição, não dura para sempre. Na véspera de fugirem juntos, Engraçadinha recua e volta para o marido, para a vida sem amor, para o seu castigo.

Temos, então, no desmembramento da cronologia de Engraçadinha, também o desmembramento de seus amores e pecados. O pecado da jovem Engraçadinha é se amar demais; o da Engraçadinha adulta, é se amar de menos. Os extremos se associam ao papel do típico folhetim rodriguiano - chocar para esclarecer. Fornecer, como disse o proprio Nelson, uma "rajada de monstros" no palco, exatamente para nos lembrarmos de quem somos - ou poderiamos ser. Engraçadinha transita pela normalidade e pela monstruosidade com a desenvoltura de quem confunde os dois parametros - e por isso, acaba transformando a sua vida num inferno travestido de cotidiano e renúncia, do qual simplesmente não consegue sair.


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5 comentários:

Emilene Lopes disse...

Confesso que não li o texto todo, mas adorei sem comentário sobre "Engraçadinha"...depois termino, rs
Bjs linda
Mila Lopes

Maria Auxiliadora de Oliveira Amapola disse...

Boa tarde, amiga.

Essa história é muito boa mesmo. Eu assisti a série que a Globo exibiu. Tem uma pitada de tudo...

Um grande abraço. Tenha muitas alegrias.

Vanessa Souza disse...

Minha personagem rodrigueana favorita.

Unknown disse...

Estou interessada em saber mais sobre N. R./ Adorei o post.

Unknown disse...

Adorei o texto! assisti Engraçadinha pela Tv, mas gostaria de ler a obra, mas nao achei em nenhuma livraria, o que é um absurdo! vcs têm algum link de livro digital ou link para download do livro????
pleaaaase, necessito desse livro!

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