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PECADORES CONFESSOS...

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Mulheres de Shakespeare Vol. IV - parte II - Ofélia



Nesta última parte das Mulheres de Shakespeare, estaremos discutindo a personagem Ofélia, por quem o principe Hamlet era apaixonado. A natureza do amor compartilhado por Ofélia e Hamlet é motivo de opiniões bastante controversas; há quem opine que houve relação sexual entre os dois - o que justificaria em certa medida o extremo descontrole emocional de Ofélia ao saber que Hamlet matara seu pai, Polônio. Na versão para o cinema dirigida por Kenneth Branagh (1996), que carrega a fama de ser a única que filmou a obra sem edições, foram incluídas cenas de sexo entre o casal. Embora estas cenas não constem do texto original da peça, permaneceram coerentes ao contexto que envolve o relacionamento dos personagens, com discursos sempre ambíguos, sugerindo um diálogo implícito. A tensão sexual entre os personagens, no entanto, é evidente - Como na cena em que Hamlet rejeita Ofélia ao perceber que ela se aproximara dele a pedido de Polônio e Gertrudes:

HAMLET: Se você é honesta e bonita, sua honestidade não deveria admitir qualquer intimidade com a beleza.
OFÉLIA: Senhor, com quem a beleza poderia ter melhor comércio do que com a virtude?

HAMLET: O poder da beleza transforma a honestidade em meretriz mais depressa do que a força da honestidade faz a beleza se assemelhar a ela. Eu te amei, um dia.

OFÉLIA: Realmente, senhor, cheguei a acreditar.

HAMLET: Pois não devia. Eu não te amei.

OFÉLIA: Tanto maior meu engano.
HAMLET: Vai prum convento. Ou preferes ser geratriz de pecadores? Eu também sou razoavelmente virtuoso. Ainda assim. Posso acusar a mim mesmo de tais coisas que talvez fosse melhor minha mãe não me ter dado à luz.

OFÉLIA: Oh, céu clemente, ajudai-o!
HAMLET: Como você se pinta Deus te deu uma cara e você faz outra. E você ondula. Vai embora - chega - foi isso que me enlouqueceu. Prum bordel - vai! (Ato III.1)


Mesmo considerando que Ofélia e Hamlet não tenham se relacionado sexualmente, há que se pensar numa intimidade inadequada entre os dois, que renderia reprimendas do pai e do irmão da moça, Laertes:

LAERTES: Quanto a Hamlet e ao encantamento de suas atenções, aceita isso como uma fantasia. Não mais.

OFÉLIA: Não mais que isso?

LAERTES: Não mais; talvez Hamlet te ame, e não haja mácula ou má fé, só sinceridade nas suas atenções. Mas você deve temer, dada a grandeza dele, o fato de não ter vontade própria. (Ato I.2)

Ofélia, embora tímida e subserviente à família, demonstra uma certeza no sentimento de Hamlet que ultrapassa sua pretensa ingenuidade. Ela parece manter seu desejo de se relacionar com o príncipe, mesmo atentando para as recomendações do pai e do irmão - e aqui nos parece forçoso lembrar da inexistência da figura materna nessa família. A figura de Ofélia permanece fortemente oprimida por Polonio, Laertes e até o proprio Hamlet, quando a "aconselha" a internar-se num convento, para logo depois manda-la para um bordel (III.1).
A contraposição entre a vida religiosa e a mundana, sugerida na fala do príncipe, pressupõe que podemos esperar um certo "furor", uma tendência à transgressão por parte da jovem. Hamlet imediatamente considera que Ofélia é capaz de mentir, de "se pintar", ou seja, colocar uma máscara. Essa mesma contraposição pode nos dar uma ideia da conduta sexual da jovem, no sentido de contrapor a pureza inspirada pela imagem do convento - que é o se esperaria de uma jovem mulher na época - e a promiscuidade, a falsidade, e o desejo que se supõe na imagem do bordel. Quando sugere que Ofelia tem duas caras, quantas vezes exatamente Hamlet a vira mentir? Quando ele diz que a amou, para logo depois desmentir, qual exatamente a extensão do "engano" que Ofélia professa? Hamlet diz que prefere vê-la num convento do que como mãe de "pecadores", adjetivo no qual ele mesmo se qualifica. A conotação erótica no diálogo dos dois, agregada ao temor de Laertes com o "encantamento" do príncipe, pode nos fazer pensar numa intensa paixão unindo Ofélia e Hamlet. Paixão essa detectada inclusive pelo pai da moça, como veremos na cena abaixo:

OFÉLIA: Oh, meu senhor, meu senhor, que medo eu tive!
POLÔNIO: Em nome de Deus, medo de quê?
OFÉLIA: Bom senhor, eu estava costurando no meu quarto quando o príncipe Hamlet me surgiu com o gibão na cabeça, os cabelos desfeitos, as meias sujas, sem ligas, caídas pelos tornozelos, branco como a camisa que vestia, os joelhos batendo um conta o outro e o olhar apavorado.

POLÔNIO: Como?
OFÉLIA: Meu senhor, eu não sei.
POLÔNIO: O que foi que ele disse?

OFÉLIA: Me pegou pelo pulso e me apertou com força, depois se afastou à distância de um braço e, com a outra mão na fronte, ficou olhando meu rosto com intensidade como se quisesse gravá-lo. E aí, me soltou: com a cabeça virada para trás foi andando para a frente, como cego, atravessando a porta sem olhar, os olhos fixos em mim, até o fim.
POLÔNIO: Vem cá, vem comigo. Vou procurar o rei. Isso é um delírio de amor, violência que destroi a si mesma e, mais que qualquer paixão, das tantas que, sob o céu, afligem nossas fraquezas, arrasta o ser a ações tresloucadas. Sinto muito. Você lhe disse alguma palavra rude, ultimamente?

OFÉLIA: Não, meu bom senhor. Mas como o senhor mandou, recusei as cartas e evitei que ele se aproximasse.

POLÔNIO: Foi isso que o enlouqueceu. Lamento não tê-lo observado com mais atenção e prudência. Temi que fosse só uma trapaça pra abusar de você; maldita desconfiança! Mas é próprio da minha idade, o excesso de zelo, como é comum no jovem, a ação insensata. Vem, vamos falar ao rei; ele deve ser informado. (Saem) (Ato II.1)

Quando Ofélia lhe relata que Hamlet entrara em seu quarto, Polônio faz uma pergunta direta: "como?". Naquela época, moças solteiras e virgens tinham seus quartos trancados a chave pela família. Se Hamlet entrara sem dificuldade, é porque sabia o caminho. Depois de repreendida pelo pai e pelo irmão, Ofélia muda de atitude com Hamlet, passando a evitar-lhe um contato mais íntimo que, muito provavelmente, acontecera antes, quando ela aceitava suas cartas e mimos. Parte da raiva do principe e também parte da certeza de que Ofélia traveste a propria cara (III.1) pode advir do fato dele se sentir subitamente rejeitado por quem antes lhe correspondera. Polônio acredita que a razão da "loucura" do príncipe tem a ver com essa rejeição, que ele agora lamenta ter provocado, o que o leva a sugerir primeiro que Ofelia converse com ele, e depois que Gertrudes fale com o filho sob a sua vigilância - que origina exatamente a cena do closet, sobre a qual já discutimos.
O modo como Polônio percebe o interesse de Hamlet por Ofélia é como um "delírio de amor", sugerindo a existência de um desejo que ele confunde com luxúria, sem considerar um sentimento sincero por parte do príncipe. Ao perceber seu engano, precipita uma gama de acontecimentos que culminam com a sua morte, inesperada e acidental, pelas mãos do próprio Hamlet, que ao notar que alguém ouve sua conversa com a mãe no closet, apunhala Polônio ao confundi-lo com o Rei Claudio.
A morte do pai é a gota d´agua para o desiquilíbrio de Ofélia - confusa e sem saber o que sentir por Hamlet, além de profundamente perturbada com a violenta morte de Polônio, Ofélia enlouquece. Nos seus delírios de loucura, Ofelia estabelece uma linguagem peculiarmente simbolica, uma forma de expressão que se baseia, principalmente, no seu conhecimento das especies de flores:

OFÉLIA: (Pra Laertes) Este é um rosmaninho, serve pra lembrança. Eu te peço, amor, não esquece. E aqui amores perfeitos, que são pro pensamentos.

LAERTES: Uma lição na loucura; pensamentos e recordações se harmonizam.

OFÉLIA: (Ao Rei) Funchos para o senhor, e aquileias. (À Rainha) Arruda para vós, para mim também alguma coisa - vamos chamar de flor da graça dos Domingos; tem que usar a sua arruda de modo diferente. Eis uma margarida. Gostaria de lhe dar algumas violetas, mas murcharam todas quando meu pai morreu - Dizem que ele teve um bom fim…(Ato IV.3)

Flores carregam a imagem da pureza, e do romantismo. Ofelia parece dar a todos a sua inocencia perdida, e também anuncia a todos a perda de seu amor - pelo pai assassinado e pelo homem que o matou. As lembranças ela entrega a Laertes, sua única familia. Para o Rei, Ofélia entrega duas espécies de ervas: uma aromática (funcho) e a outra venenosa (aquileia), uma associação interessante dado o caráter duvidoso de Claudio. Para a Rainha entrega margaridas e arrudas, esta última muito comum para afastar mau-olhado, o que sugere tanto a boa natureza de Gertrudes quanto a sua propensão em atrair maldade. O delírio de Ofélia, portanto, vem acompanhado de uma visão precisa da personalidade daqueles à sua volta.
Para si mesma, no entanto, sobra pouca coisa. Alguns ramos de arruda, "flor da graça aos domingos". Alguma pouca sorte, da pureza que lhe resta. "As violetas murcharam", ela diz. Sabe-se mais adiante que Ofelia morrera afogada, e fica a dúvida se o afogamento fora acidental ou não. Hamlet chega de viagem no dia do enterro, e confessa seu amor por Ofélia, diante de um Laertes enfurecido: "Quarenta mil irmãos não poderiam, somando seu amor, equipará-lo ao meu" (Ato V.1). Para se vingar, Laertes conspira com Claudio para assassinar Hamlet durante um duelo, com uma espada envenenada. E consegue - para depois de arrepender ao constatar que fora usado pelo Rei fratricida. A morte atinge ainda o proprio Laertes, Gertrudes e Claudio.
E assim podemos ver Hamlet como um homem cuja relação com as duas mulheres de sua vida fora cercada de controvérsia, amor e destruição. A visão de Hamlet sobre a natureza feminina é parcial, influenciada pelos acontecimentos que lhe cercam. Mesmo assim, ele se mostra profundamente ligado a elas, atraído por elas, e herdando-lhes a sensibilidade, a paixão, e o legado de não se submeter completamente ao codígo macho-patriarcal - se o tivesse, teria sucumbido à violência com mais facilidade. Hamlet provavelmente é o herói trágico mais feminino de Shakespeare. E Ofélia, com todo seu pecado meramente sugerido, é a mais ideal das companheiras de infortúnio.


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