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sexta-feira, 5 de março de 2010

MULHERES DE SHAKESPEARE Vol. III - Cordélia



Harold Bloom afirma, em seu Shakespeare e a Invenção do Humano (2000), que Rei Lear (1606) é uma tragédia shakespeariana sobre o amor em excesso. Bloom se refere ao amor filial, aos desencontros dos relacionamentos em família. Rei Lear não é tanto sobre a loucura do protagonista, mas sobre os motivos pelos quais o protagonista enlouquece; de acordo com Bloom, o amor é o tema central que propicia o desenvolvimento positivo ou negativo de todos os personagens. Se nos ativermos aos personagens femininos, veremos que as representações de amor são determinantes no destino das filhas de Lear – Regan, Goneril e Cordélia. O que pretendemos com este post é entender a relação complexa que se estabelece entre a personalidade de Cordélia e o amor, da forma como é representado na trama – isto é, devastador, afetado, sempre em excesso (Bloom, 2000). Vamos explicar melhor com perguntas: de que forma Cordélia reage à manifestação amorosa, sobretudo em relação ao pai, Lear? Como essas reações caracterizam sua individualidade, seu modo de ver o mundo e, microcosmicamente, a família? Os relacionamentos amorosos estabelecidos por Cordélia – seja filial ou marital – são fundamentais para o entendimento da sua personalidade – como também, pelo critério de comparação, das ambiciosas Goneril e Regan e do dramático e assertivo Lear.

O drama começa com Lear submetendo as filhas a um teste de demonstração de amor: propõe-se a dividir seu enorme reino entre as três filhas, mas para isso elas deverão dizer o quanto o amam. Regan e Goneril enchem os ouvidos de Lear com um discurso poético, e são agraciadas com generosos pedaços de terras; Cordélia, no entanto, escolhe a sobriedade e o prosaicismo, e afirma dedicar a Lear o amor que uma filha dedica a seu pai. Seu discurso lembra bastante o de Desdêmona, quando afirma no primeiro ato de Otelo que tem um senso de dividido dever entre o amor pelo pai e pelo marido que escolhera; Cordélia parece partilhar deste mesmo dever, e explica ao pai que seu sentimento filial não é maior nem menor do que deveria ser. Mas Lear se sente preterido por aquela de quem esperava a maior declaração de amor, por se tratar de sua filha favorita; assim, a parte que caberia à Cordélia é dividida entre suas duas irmãs. Sem bens, portanto, sem dote. Lear submete Cordélia ao desejo de seus pretendentes: o Rei da França e o Duque de Borgonha – mas este último desiste da disputa quando percebe que não herdará o poder político do pai de Cordélia; ela então casa-se com aquele que mais tarde se tornaria Rei da França - e que, tendo em vista a rivalidade anglo-francesa, não tinha a preferência de Lear.

Novamente, a associação com Otelo é inevitável: Cordélia, assim como Desdêmona, recusa-se a adotar o discurso esperado, e atém-se exclusivamente ao seu dever e ao seu desejo – escolhe dizer ao pai apenas o que pensa, na exata medida em que pensa. Acaba também, casando-se com o marido de sua preferência, ironicamente, com a anuência de um pai que pretendia puni-la. Impossível não lembrar das palavras de Brabâncio que, após ouvir de Desdêmona que seu amor por ele não é maior que o que deve ao marido, diz a Otelo que está entregando a ele aquela que nunca entregaria numa situação diferente (I, 2). Desdêmona é a única filha de Brabâncio; Cordélia é a filha preferida de Lear. Essa justaposição do amor com o dever , o desejo e a raiva está bem presente nas duas peças, e é igualmente determinante no destino de seus personagens. Na trama de Rei Lear, há um aprofundamento da relação entre o amor e a tragédia que Shakespeare começara a esboçar em Romeu e Julieta, e desenvolvera em Otelo. Entretanto, em Lear, como também em Hamlet, Shakespeare reforça essa dicotomia amor-tragédia sob o ponto de vista do relacionamento familiar, mais especificamente entre pais (ou mães) e filhos.

E já que estamos enfatizando aqui o papel da individualidade feminina nesse aspecto trágico do relacionamento amoroso (familiar-marital), é importante notar que no âmbito das quatro principais tragédias shakespeareanas, a figura materna só encontra representação em Hamlet. Ainda assim, a figura da Rainha Gertrudes, mãe de Hamlet, vem subdesenvolvida e envolta numa atmosfera de transgressão e mistério. Sobre ela vamos falar no próximo volume. O ponto aqui é entender que em Lear, toda a representação do amor filial se faz através de padrões paternalistas, tendo na figura paterna o ícone máximo de autoridade, tanto internamente (família) quanto externamente (política/sociedade). Exatamente como nas tragédias de Romeu e Otelo, o retrato shakespeareano em Lear marca com cores berrantes as complexidades patriarcais: o sentimento exacerbado, a ênfase na competição, no confronto, a manifestação explícita da raiva, o poder do estrategista, e da observação - como também, o papel de todos esses fundamentos no destino trágico não apenas dos personagens masculinos, mas na supressão de toda e qualquer feminilidade da trama – e suas conseqüências.

No caso de Cordélia, há uma estreita relação entre a construção da identidade da filha de Lear e o seu discurso. Diferente de Desdêmona, amante e devoradora do discurso, Cordélia deixa claro, desde a sua primeira aparição, que não partilha da óbvia verborragia de suas irmãs. Cordélia se mostra bem menos inocente que Desdemona, porém com o mesmo senso de honestidade. A caçula de Lear percebe o uso falso que suas irmãs fazem das palavras, e percebendo sua iniqüidade diante delas, resolve que deve apenas “amar, e se calar” (I, 1). Mais tarde ao declarar o amor que sente pelo pai, avisa: “eu o amo de acordo com o laço que nos une, não mais nem menos” (idem). Sua explicação, conforme já antecipamos, é bem parecida com a de Desdêmona, quando explica ao pai o seu dever (ou sentimento) dividido entre ele e seu marido Otelo. Cordélia sente da mesma maneira, e em contrapartida, questiona o amor incondicional a Lear que suas irmãs professaram antes dela:

CORDÉLIA — Meu bondoso senhor, vós me gerastes, educastes e me amastes, pagando eu todos esses benefícios qual fora de justiça: com obediência e amor vos honro sempre extremamente. Por que têm maridos minhas irmãs, se dizem que vos amam sobre todas as coisas? Se algum dia vier a casar, há de seguir o dono do meu dever apenas a metade de meu amor, metade dos cuidados e das obrigações. Certeza é nunca vir a casar-me como as duas manas, para amar a meu pai por esse modo. (I, 1)

Lear, visivelmente contrariado com o que chama de “aspereza” da filha, deixa sarcasticamente apenas a verdade como herança para Cordélia. A violenta reação do rei diante da atitude de Cordélia inspira uma variedade de interpretações. Do ponto de vista psico-afetivo, o amor de Lear por Cordélia atinge uma conotação quase sexual – ele não admite concorrência no afeto da filha, e a deserda depois de ouvi-la dizer que dividirá seu amor entre ele e o homem com quem ela vier a se casar. O que se presencia é uma forte crise de ciúme por parte do Rei, que faz valer sua autoridade para expulsar a filha de sua vida, assim como aqueles que a defenderem, como é o caso do leal Kent. Lear claramente considera a atitude de Cordélia uma traição, e chega a ecoar as palavras de Brabancio, pai de Desdêmona: “melhor seria que nunca tivesses nascido” (idem). Ao perceber que o Rei da França deseja desposar Cordélia a despeito da sua contrariedade com a filha, entrega-a “sem o nosso amor, nossa benção, nossa graça” (idem).

A reviravolta na mente do velho Lear se dá quando resolve viajar pelas terras que dera às filhas, esperando que estas lhe dedicassem o mesmo “amor” de antes. Mas é claro que isso não acontece – Lear é destratado por Goneril e Regan, que não toleram os excessos do Rei e de seus cavalheiros. Do alto de uma vaidade sem limites, Lear rompe com as duas, e se vê sozinho no meio de uma tempestade, tendo apenas o Bobo e um mendigo (na verdade, Kent disfarçado) como companhia. O personagem se desnuda – sem vaidades, vantagens, roupagens que a postura do Rei exige. Se repararmos no discurso de Lear, veremos que ele faz questão de usar o tradicional “nós”, ao invés de “eu”, para referir-se ás próprias coisas. Mas esse pronome no plural, para Lear, tem outro sentido: não configura a representação dele como paradigma do reino, do povo, e sim de si mesmo. São duas identidades: o velho tolo, vaidoso e dono de um amor instintivo, irrestrito; e o Rei, o homem poderoso, autoritário, porém, generoso, e cujo senso deturpado de reciprocidade acaba arruinando-o.

Cordélia, então, reaparece em cena: já rainha da França, ela acompanha o marido na invasão Inglaterra, para resgatar seu pai da miséria. A atmosfera de politicagem, a mesclagem entre paixão e ambição, luxuria e poder – já que Goneril e Regan são seduzidas pelo mesmo homem, o bastardo Edmund, que pretende governar – não importa à Cordélia. Seu objetivo é salvar um pai enganado, desprovido de toda dignidade. A filha pródiga não busca justiça para si própria. Numa manifestação da metade do amor que cabe ao pai, Cordélia tenta, em vão, fazer com que as coisas retornem ao seu curso natural. Mas ela é uma mulher, reta, honesta, centrada portanto, sozinha no caos em que se transformou o reino de Lear. È tarde para Lear, já refugiado na loucura; para o amigo Gloucester, cego dos dois olhos pelas artimanhas do bastardo Edmund; para Edgar, irmão de Edmund condenado ao ostracismo até quase o fim da peça; e Cordélia descobrirá que é tarde demais também para ela.

A invasão francesa dá errado e Cordélia é presa junto com Lear e condenada à morte. A morte injustificada se assemelha a de Desdêmona e a escolha de Cordélia, no fundo, é a mesma: enquanto Desdemona escolhe o amor por Otelo em detrimento ao amor pelo pai e por Veneza, Cordélia escolhe o amor por Lear ao amor pela França e, consequentemente, pelo marido, que nem é mais mencionado. Lear e Cordélia se reconciliam, partilham a prisão e o castigo. Quando a verdade sobre Edmund vem à tona, nada mais pode ser feito: Cordélia já cumprira sua sentença, morrendo enforcada. A manifestação do amor filial em Cordélia é mais consistente em suas ações do que em suas palavras. As suas emoções são latentes; suas lágrimas e murmúrios falam mais que um discurso elaborado, poético, como o de suas irmãs – que aliás, acabam matando uma à outra por causa de Edmund. Mas sua retidão não lhe garante a sobrevivência – assim como Desdêmona, Cordélia morre pelas próprias palavras – ou pela falta delas.


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