VESTIDO DE NOIVA – ALAÍDE, LUCIA, MME. CLESSI
Parecia ser a obsessão de Nelson Rodrigues procurar o exagero, a monstruosidade da natureza humana nas atitudes mais corriqueiras. O lado obscuro da trivialidade. Ele mesmo disse que consagrar o óbvio foi o grande legado da sua obra. E de fato, com o obvio ele expõe também a mesquinhez, o grotesco, o falso, e – porque não? – o atípico. E esta miscelanea de possibilidades é muito latente, sobretudo na construção rodriguiana dos personagens femininos.
Afinal, há algo mais clichê do que duas mulheres apaixonadas pelo mesmo homem? Ou ainda, mais folhetinesco do que duas irmãs que se odeiam, porque amam o mesmo homem? Este é o argumento inicial de Vestido de Noiva (1943), segunda incursão de Nelson Rodrigues na dramaturgia e considerada, até hoje, o ponto zero do teatro moderno brasileiro. Vestido de Noiva é o Hamlet de Nelson Rodrigues: em tragicidade, em complexidade, em favoritismo. É de longe, a peça preferida da crítica. E é, basicamente, um drama sobre o amor e a mulher.
Há três personagens femininas fundamentais na peça: Alaíde, a noiva de fato; Lúcia, a noiva de direito; e Clessi, a noiva do asfalto. Alaíde, jovem, impulsiva e voluntariosa, rouba o namorado da irmã Lúcia e casa-se com ele; Lúcia jura matá-la e tomar-lhe de volta o marido. Clessi é uma dama da noite, sofisticada e linda, que se apaixona por um garoto de dezessete anos. E aonde isso nos leva? Na cartilha de Rodrigues, à tragédia total.
Mas não pense que tudo é tão simples. A trama é desenvolvida de forma anacronica – ou seja, começa pelo fim. E começa antes mesmo do levantar das cortinas, com sons de um atropelamento. O cenário não ajuda a descomplicar o enredo. Vestido de Noiva introduziu no teatro brasileiro o que poderíamos chamar de um palco 3D – são três planos em desenvolvimento: realidade, alucinação e memória. O foco em cada um dos planos se alterna durante os três atos, com truques de iluminação. E é nesse estilo back and forth* que a historia dessas três mulheres nos é apresentada.
O principal entrelaçamento no destino destas três mulheres é a morte. O atropelamento que se ouve no inicio do drama é o de Alaíde. O plano da realidade é, essencialmente, a cirurgia a que Alaíde é submetida. O estado inconsciente de Alaíde desencadeia os outros dois planos. No plano da alucinação, Alaíde procura por Mme. Clessi, uma prostituta morta no inicio do século XX, para cuja casa a família de Alaíde se muda. Alaíde leu o seu diário, e se sentiu profundamente atraída pela personalidade sedutora daquela mulher, de tal forma que, quando está entre a vida e a morte, a sua memoria cronológica se mistura com as passagens do diário de Mme. Clessi. E é a sua conversa imaginária com Mme. Clessi que estimula a sua memoria e revela todos os acontecimentos que culminaram no seu atropelamento. Há sempre no ar a idéia de que Lucia possa ter cometido ou influenciado o acidente de Alaíde.
E o que mais une Alaíde, Lúcia e Clessi?
Podemos dizer – e esta é uma característica que encontraremos em muitas mulheres rodriguianas – que essas três mulheres possuem um grau de paixão desmedida – por si mesmas e pelo objeto de seus desejos – que é a base do seu pathos, a essencia da sua tragédia. Alaíde rouba o namorado de Lucia, consegue casar com ele, mas vive assombrada com a possibilidade de ser traida pela irmã e pior, ser assassinada por ela. A relação entre Alaíde e a finada Mme. Clessi sugere uma propensão ao pecado, uma crescente fascinação pelo carnal, pelo mistério. No seu estado de quase-morte, Alaíde confunde a historia de Mme. Clessi com a sua propria, coloca-se no lugar dela. É interessante notar que ambas sofrem uma morte violenta: Clessi é apunhalada no rosto pelo namorado adolescente; Alaíde sofre um atropelamento em circunstancias não esclarecidas. Ambas morrem desfiguradas: Clessi com um talho num rosto antes impecável; e Alaíde com os ossos da faces afundados. Desprovidas, portanto, da beleza, e do corpo.
Lucia, por outro lado, professa-se apaixonada irremediavelmente por Pedro, marido de Alaíde. O seu total despudor em dizê-lo se une a consciencia de que Pedro não presta, nem é digno de confiança. Depois do casamento, atiça o cunhado sem jamais consumar o adultério. Diz a ele que só se entregará quando ele se casar com ela, induzindo-o a planejar o assassinato da esposa. Depois da morte de Alaíde, Lucia se acovarda, impressionada com a promessa da irmã de que mesmo morta, não a deixaria casar com Pedro. É quando fica no ar a cumplicidade de Lucia no acidente que matou Alaíde. Lucia parece perplexa quando Pedro confessa que já tinha decidido matar a esposa, mas ele a acusa de planejar tudo junto com ele. “Só não pensamos no atropelamento”, ele diz (ato III). Acidente ou crime, Alaíde morre de forma conveniente, deixando o caminho livre para Pedro e Lucia.
Há ainda um ultimo ponto que notadamente une as tres mulheres: o vestido de noiva. Ele pertence a Alaíde, no inicio do primeiro ato; e à Lucia no final do terceiro ato. No desenvolvimento da trama, revela-se que Clessi foi sepultada vestida de noiva. E o que representa o vestido de noiva neste contexto criado por Rodrigues?
O vestido é a convenção, a pureza, o espírito dessas mulheres. É o sonho da consumação de um desejo, ou de um sentimento. O vestido pelo qual Alaíde traiu Lucia. O vestido pelo qual Lucia pensou em matar Alaíde. O vestido que confere a Clessi uma dignidade que ela não experimentou em vida – e que levou o unico amor de sua vida a assassiná-la. De certa maneira, enterrá-la com o vestido de noiva representa a consumação desse amor, uma cerimônia de casamento às avessas. O vestido representa a pureza do sentimento de Clessi pelo assassino, uma união que só podia se consumar na morte.
É importante notar que o caminho até a inocencia representada pelo vestido é muito tortuoso para essas mulheres. É a ironia rodriguiana que faz com que a pureza de um vestido de noiva contraste com a monstruosidade de uma traição, de um assassinato, e de um acidente mal-explicado. É o branco invariavelmente manchado de sangue. É a marcha nupcial se entrelaçando com a marcha fúnebre, exatamente como na ultima cena da peça.
Nelson Rodrigues constroi em Vestido de Noiva a sua obra-prima. Um texto intricado, complexo, em cima de um tema de folhetim. Um entrelaçamento de tres cenarios suspensos, iluminação acurada e sons incidentais. E um poderoso imbricamento entre três mulheres fortes, apaixonadas e por isso mesmo, trágicas, bem como assustadoramente proximas da nossa própria realidade.
* back and forth – para frente e para trás
5 comentários:
Ficção e realidade são amantes inseparáveis, na obra rodrigueana.
Prá Voce...
Um ramalhete
Com rosas e alecrim
Nele, fitas de afeto
Em laços de bem querer,
Um sorriso em cada pétala
Um bilhete de paz
Pra tua vida...
E um pedido!
Jamais se esqueça de mim!
(Sirlei L. Passolongo)
Saudações Poéticas.....M@ria
"....alma é vaso de porcelana chinesa
não vá entorná-la a na mesa quando puxar a toalha."
Chandal Meirelles Nasser
Feliz Noite e beijos meus...M@ria
Lindo post Claudinha e vc mais linda a cada dia. Não deixe de vir tomar um cafezinho conosco!!!!!
Beijos do Zé Carlos
Tem selinho aqui prá todos os meus amigos.
Venha buscar os seus.....Carinho meus! M@ria
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