Lidia – A mulher sem pecado
A primeira mulher rodriguiana que discutiremos no blog é a menos conhecida das pecadoras de Nelson Rodrigues: trata-se da protagonista da peça de estréia do dramaturgo, cujo título inspirou de forma irônica o titulo deste blog: chamava-se A Mulher sem Pecado (1941). Usei essa peça de Rodrigues na minha dissertação de mestrado, para traçar um paralelo entre Lídia e a Desdêmona de Shakespeare. Conclui que apesar da disparidade de tempo e espaço, as duas tem muito em comum: são mulheres que pecam pecados diferentes, por razões semelhantes.
Por aí já podemos ter uma ideia de quem é Lídia, a “Eva” de Rodrigues ou, segundo o crítico Sabato Magaldi, aquela que é o substrato de todas as futuras mulheres rodrigueanas (MAGALDI, 2000). Em A Mulher sem Pecado, temos inicialmente a história de uma mulher massacrada psicologicamente pelo marido paralítico, que está convencido de que ela o trai. Olégario, o marido, é um homem visivelmente atormentado, com um enorme complexo de superioridade e por isso mesmo, com uma profunda dificuldade em aceitar independencia, personalidade e auto-suficiencia de qualquer pessoa, sobretudo das mulheres.
Claro que, em se tratando de Nelson Rodrigues, podemos esperar muito mais dos personagens e da trama em si. O cenário idealizado para a peça, sombrio e desiquilibrante, prepara a imaginação da platéia para o desarranjo emocional de Olegário, que passa o tempo tentando manipular a esposa, os empregados, e até a própria mãe que, não coincidentemente, passa os três atos da peça enlouquecida e em silêncio, sentada numa cadeira e enrolando um pequeno pedaço de pano. Olegário ouve vozes femininas, possivelmente de sua primeira esposa, já morta, e que o teria traído; ele também tem uma alucinação recorrente: em momentos de profundo stress com Lídia, Olegário vê uma menina num vestido curto, com uma expressão indefinida e parada sempre na mesma posição: em pé, com as mãos tapando o sexo.
“Você olha para mim com um olhar de mártir! Pois bem. Agora mesmo, neste minuto, você pode estar-se lembrando de um amigo, de um conhecido ou desconhecido. Até de um transeunte. Pode estar desejando uma aventura na vida. A vida da mulher honesta é tão vazia! E eu sei disso! Sei!” (Olegário para Lídia – ato I)
A partir desse ambiente, somos apresentados à Lídia, e suas inúmeras tentativas de apaziguar a desconfiança do marido. Lídia suporta os delírios de Olegário, e muitas vezes insiste em contradize-los, tornando a relação deles cada vez mais hostil. O que percebemos imediatamente nas discussões de Lídia e Olegário é o obssessivo apelo erótico. A grande preocupação de Olegário é saber se Lídia se mantém casta, sem pensamentos nem sonhos sensuais e sem experiencias extra-conjugais. A impotencia fisica do marido de Lídia simboliza uma impotência sexual, uma incapacidade de se manter macho para a esposa. Essa incapacidade tem um efeito arrasador na visão que Olegario tem da mulher, que é bonita, vaidosa, mais jovem do que ele. Lídia, no entanto, embora preserve sua feminilidade, não busca conscientemente ser sensual, porque tenta cada vez mais exasperadamente salvar seu casamento.
Você não acha que seria negócio para você e para todas as mulheres? Que a fidelidade fosse uma virtude facultativa? A mulher seria fiel ou não, segundo as suas disposições de cada dia. Você com o direito – de ser infiel. Que beleza!(Olegário zomba de Lídia – ato I)
Olhando ainda mais de perto, vemos que Lídia, embora tente neutralizar as sandices de Olegário, é uma mulher com suas proprias necessidades. Novamente, o elemento sexual parece determinante na deterioração do casamento de Lídia e Olegário. Mesmo antes de se professar paralitico, Olegário e Lídia não mantinham uma vida sexual satisfatoria – ou pelo menos, não satisfatória o suficiente para Lídia. Olegário alegava que não podia ser sexualmente ousado com sua esposa, porque não seria respeitoso. Mas Lídia não concordava com isso, e a sua frustração nesse departamento de certa forma alimenta a paranóia de Olegário. Rodrigues trabalha as fantasias de Lídia, os segredos de Lídia, e o seu desejo latente para tornar a personagem ligeiramente ambígua aos olhos do espectador. Nesse sentido, um personagem que contribui massivamente na construção da dubiedade em Lídia é o chofer da família, o escorregadio Umberto, que enquanto trabalha para reforçar cada vez mais as suspeitas do patrão, tenta a todo custo seduzir a esposa de Olegário.
Quero saber de mim! Você não soube ser marido! Ainda hoje, eu quase não sei nada de amor. O que é que eu sei de amor? […] Sei tão pouco! Era melhor que não soubesse nada! […] As minhas amigas me contam coisas... E eu fico espantada, espantadíssima... Nem abro a minha boca, porque não convém... Eu sou uma esposa que não sabe nada, ou quase... No colégio interno, aprendi muito mais que no casamento. Parece incrível! (Lídia para Olegário – ato II)
A vida de Lídia se torna um inferno, e ela se vê numa encruzilhada ironica - precisa escolher entre a constante opressão de um marido desiquilibrado, determinado a enlouqucê-la junto com ele; e uma relação com um homem atraente, mas um cafajeste típico. Se escolher o casamento, estará condenada a uma vida doentia; se escolher o adultério, poderia se libertar da loucura do marido e ter uma vida sexual saudável. Rodrigues constroi para Lídia uma dúvida que vai de encontro ao conceito que a sociedade moderna tem de “pecado”. O pecado de Lídia é ficar com o marido, ou ceder a perspectiva de ter um amante? Nesta trama, os pólos são inteligentemente invertidos, de tal maneira que a opção saudável para Lídia não é outra, senão trair.
Estou que não posso ouvir nada no meio da rua...Nem ver um nome feio desenhado no muro... […] Umberto me beijou! a mim! tua nora! e me disse um nome, uma palavra que me arrepiou... E ainda me arrepia! […] Meu marido mete na minha cabeça tudo o que não presta! O dia inteiro em cima de mim[…] Quando leio no jornal a palavra "seviciada" - eu fecho os olhos... (com volúpia) Queria que me seviciassem num lugar deserto... Muitos... […] Umberto me chamou de cínica e eu... Eu gostei... (baixo e aterrorizada) Quem sabe se eu não sou? Não! Não! Minhas palavras estão loucas, minhas palavras enlouqueceram! Perdão! Perdão! (Lidia para a mãe de Olegário – ato III)
No fim, vence o instinto de sobrevivencia. Cansada da martirização de Olegário, Lídia resolve se transformar exatamente naquilo que ele mais teme, e vai embora com Umberto. Ela deixa um bilhete de despedida, que Olegário lê justamente na hora em que decide acreditar, de uma vez por todas, na fidelidade da esposa. É também no ultimo ato que descobrimos que Olegário nunca foi paralítico. Ele inventara a paralisia para testar a esposa, e perde o seu proprio jogo, porque acaba estimulando Lídia a cometer o adultério. No fechar das cortinas, Olegário está em pé com um revolver na mão, ficando implícito o seu suicídio. E com a morte de Olegário, o adultério de Lídia se esvazia com a viuvez. Lidia se torna uma mulher sem pecado, sexualmente realizada e, finalmente, livre.
fonte citada: Magaldi, Sábato. Nelson Rodrigues: Dramaturgia e Encenações. Ed. Perspectiva, 2000.
3 comentários:
Claudinha, e que dissertação!
Realista, bacana, e demonstrando a genialidade do Nelson. (Quantas Lídias e quantos Olegários por ai, não?)
E a ti que de uma forma técnica, mas com a presença feminina, e o toque do teu coração, torna tudo muito bem delineado. Gostei, e principalmente dessa feminilidade do Blog, que é um dos mais bonitos que já vi.
É um prazer recebe-la no Vozes de Minha Alma, seja sempre bem vinda.
Bjs, bom domingo.
Hi, thanks for follow my blog, and for your comment.;o) some of these songs I have not eigther heard for a long long time!Best regards from Norway.
Não raros os casos de paralisia...nas relações. Estanca o fascínio, espanca o desejo...
Fidelizar-se não é um remédio, muito menos incentivo ao tédio, não é ato, nem trato, é o tato que resolve, que se envolve, que revolve o tártaro cotidiano e dissolve as incertezas.
A obra rodriguiana é profunda, na denúncia das hipocrisisas, das contradições da família, com seus baús de segredos que, se abertos, transbordam desertos, evocam rancores e as cores...nem cores são.
Parabéns pelo blog.
Não tive outra alternativa, senâo...segui-lo!
Abraço poético.
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