Neste último capítulo dos nossos volumes sobre as mulheres de Shakespeare, vamos falar sobre duas das mais discutidas figuras femininas no ambito das tragédias escritas pelo dramaturgo: a rainha Gertrudes e Ofélia, ambas retiradas da peça Hamlet, o príncipe da Dinamarca (1601) . Na primeira parte deste capítulo, falaremos da Rainha Gertrudes, mãe do príncipe. Na segunda parte, trataremos de Ofélia, grande amor de Hamlet.
A tragédia de Hamlet, aquela do famoso monólogo ser-ou-não-ser, é talvez a que possui o herói mais complexo de todas as peças de Shakespeare. Confuso, desconfiado, cético, presunçoso, profundamente sensível e inteligente, o príncipe Hamlet é o centro de uma dúvida quase sem solução - matar ou não matar o assassino do pai, o rei Hamlet, cujo espírito avisa ao filho da emboscada que sofrera. É revelado ainda o nome do conspirador - Claudio, tio do príncipe, é também o atual marido de sua mãe, Gertrudes.
A linha de tempo da peça não é sempre detectável, mas nós sabemos pelo próprio Hamlet (Ato I.2) que o casamento de Gertrudes e Claudio aconteceu três ou quatro meses após o enterro do Hamlet pai. A revelação do fantasma do Rei assassinado se dá no dia das núpcias do casal, e isso nos precipita a primeira das muitas visões que Hamlet tem da mãe: a adúltera, aquela que cometeu o pecado mortal da traição. E aqui devo me explicar melhor: porque, para o leitor moderno, ouvir Hamlet pensar que Gertrudes traiu seu marido nos remete diretamente a uma relação excusa, anterior à morte do Rei. Mas, na época retratada na peça, o simples fato de Gertrudes se casar novamente já pode ser considerado adultério. Se ela se casou com o cunhado, tanto pior: porque além de adultério, ela praticara incesto - já que na mentalidade antiga, quando a mulher entra para uma família, ela se torna filha e irmã de seus membros. Como irmão de seu marido, Claudio deveria ser um irmão também para ela, e não alguém que ela pudesse desejar. A imagem de Gertrudes, portanto, é a da mulher transgressora, que não apenas enterra o marido, como também o troca por um homem que devia ser proibido para ela. Como esposa, não lhe cabia o desejo; mas fica claro pelas palavras de Hamlet na cena do closet - do qual colocamos um extrato uns posts atrás - que Gertrudes casou-se cedendo à uma atração pelo cunhado. A rainha se deixou seduzir, traindo assim o conceito de amor que deve cercear uma escolha de casamento. Hamlet justapõe para a mãe as imagens do pai e do tio para que ela enxergue a contradiçao de seus sentimentos.
Neste momento da trama, em que há o confronto entre mãe e filho, surge uma outra visão de Gertrudes: a da mãe devotada, envergonhada não diante de seu desejo pelo marido, mas diante da decepção que esse sentimento causa em seu único filho. Num momento da trama em que Hamlet finge-se desiquilibrado, com o intuito de desestabilizar o governo e o casamento de Claudio, Gertrudes se sente responsável pela aparente insanidade do filho. Shakespeare nos presenteia com um relaciomento tão intricado entre Hamlet e Gertrudes que, mais tarde, Freud os usaria como exemplo para explicar o famoso Complexo de Édipo - pois é evidente que Hamlet assume para si o comportamento de homem da casa, senhor da família que foi deixada órfã pelo pai morto - e por conseguinte, não reconhece em Claudio o substituto legítimo do marido da mãe. No fundo, Hamlet concede esse papel a ele mesmo - o que nos leva a um estágio inconsciente de incesto que não se tem a intenção de concretizar, mas que tem sua representação simbólica no fato de pai e filho terem exatamente o mesmo nome. Em Shakespeare, nada é coincidência.
Na referida cena do closet, Hamlet tenta fazer Gertrudes prometer que não se relacionará sexualmente com Claudio outra vez. É a derradeira tentativa do príncipe de recuperar a visão da mulher pura de corpo e de espírito - na verdade a única que ele realmente aceita que a mãe tenha. Naquela passagem, Gertrudes se assusta com a visão que Hamlet tem do pai - coincidência? - e desvia o assunto. Mas, no ultimo ato, a rainha se redime de quaisquer pecados que possa ter cometido - seja o da fraqueza, seja o da cegueira. Ao perceber que Claudio tenta envenenar Hamlet durante o seu duelo com o bravo Laertes, Gertrudes toma o veneno no lugar do filho. Sua atitude inesperada desestabiliza completamente Claudio, e precipita a revelação de todos os seus crimes. Hamlet, porém, não escapa: é morto por Laertes. Mesmo assim, o sangue de Gertrudes derramado em defesa do filho é um retorno ao espírito, e um abandono do corpo que a condenara antes, quando se casou com Claudio. A reunião da família original se dá na morte: Hamlet pai, Hamlet filho e Gertrudes, rainha do maior dos sentimentos. E o resto é silêncio.
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