O romance em evidência neste post, Lolita, escrito pelo russo Wladimir Nabokov em 1955 é, à grosso modo, o diário de um pedófilo. A história é narrada de forma epistolar, em primeira pessoa, sempre do ponto de vista de um homem de meia-idade, escritor, condenado à morte por matar o amante da enteada de 12 anos, com quem estava romanticamente envolvido. A estrutura do romance lembra bastante o de Luciola, de Machado de Assis: há uma introdução de um personagem ficticio, que seria o editor do livro, explicando como teve acesso às cartas do condenado e como prometera divulgà-las apenas após a morte dele, e da menina envolvida. Em Luciola, temos uma amiga de Paulo esclarecendo que resolvera reunir as cartas dele num livro e explicando o motivo pelo qual resolvera entitulá-lo Luciola. No história de Nabokov, podemos dizer que Lolita é o pirilampo de Humbert – que é como se denomina o condenado.
Humbert começa a sua história explicando que sempre se sentira atraído por meninas pré-adolescentes. E que acredita que essa atração se deve – surprise, surprise – a um coito interrompido na infancia, quando ele e a menina tinham a mesma idade: 12 anos. Anabel, a Lolita original, morrera ainda criança, sem concretizar o desejo que a unira ao jovem Humbert. Desde então, ele diz procurar em todas as meninas de doze anos o ninfetismo de Anabel.
É um erro pensar que Wladimir Nabokov pretende justificar a pedofilia do protagonista por vias da psicanálise. Na análise biográfica anexa ao livro, explica-se que Nabokov considerava Freud um “charlatão”, e a psicanálise uma charlatanice. Assim, o fato de Nabokov adicionar um componente freudiano à construção da personalidade de Humbert só depõe contra o personagem – pois o torna um produto de um meio capaz de provê-lo de todo tipo de subterfúgio para que ele realize o seu fetiche doentio. Na ideia de Nabokov, é mais fácil dizer que um pedófilo é fruto de trauma, de uma anormalidade qualquer, do que admitir a pedofilia como herdeira direta e marginalizada de uma prática social antiga. A famosa “ovelha negra” da familia. De fato, temos que considerar que a ciencia e a religião são constantemente deturpadas para fins nada benéficos. É tanto assim que na forma atual, se forem pegos, homens como Humbert sempre podem alegar privação de sentidos – ou tentar dividir a responsabilidade com o sujeito aliciado.
A psicanálise, portanto, não humaniza o pedófilo de Nabokov. Mas, estranhamente, o trabalho de humanização do personagem se dá através de suas memórias – quando ele efetivamente começa a descrever o seu relacionamento com a jovem Dolores Haze, aliás Lolita. E aí entramos no grande dilema: quem era afinal, Lolita? Será que podemos confiar na descrição de Humbert? Afinal, o olhar deste personagem sobre a menina está dotado de absoluta parcialidade, pois ele já se confessara atraído sexualmente por ela. Não estaria Humbert fornecendo uma deturpação – consciente ou não – da figura de Lolita, julgando-a exageradamente provocativa, para justificar seu destempero?
É nossa idéia a de que, quando lemos o romance, temos que considerar a complexidade da perspectiva desenvolvida pelo narrador-personagem, o condenado Humbert. Pois Humbert não apenas confessa sua atração por Lolita – ele confessa tambem o seu amor. Ou o que o personagem entende por amor – que corresponde claramente ao amor de um pré-adolescente, que não teve uma iniciação sexual comum a meninos dessa idade. Nós, que acreditamos que a psicanálise tem fundamento, temos que considerar que esse trauma inicial pode ter funcionado como gatilho para uma disfunção sexual que leva o personagem a se sentir atraído apenas por sujeitos que o lembrem daquela que ele não teve. Anabel, a ninfeta original. Embora no inicio do romance, o proprio Humbert descarte essa possibilidade – admitindo, claramente, uma opção romantica por ninfetas – sabemos que a negação faz parte de um processo de des-patologização do personagem. Em outras palavras, Humbert se recusa a enxergar a sua opção como doença.
Temos que considerar, portanto, que o olhar que Humbert lança sobre Lolita não é apenas a de um homem com uma tara sexual, mas de alguem que prefere se relacionar com meninas dessa idade, mas que sabe que essa opção não é aceita com naturalidade pelo seu meio social. Alguém cujo conflito interno é intenso, alguém atormentado pelo desejo de ser fiel a si mesmo, e pelo medo de ser marginalizado. Para um homem assim, não é tão fácil mentir. A complexidade do olhar de Humbert vai além da mentira. É um olhar romântico, é a sua tentativa de dar uma forma menos grotesca ao sentimento que o unia à Lolita. Na parte introdutoria, essa forma oscila entre o desejo de se redimir e a vontade de se justicar perante um sociedade que já o condenara por outro crime. Mas, a partir do momento em que Humbert descreve as suas lembranças, fica claro que a forma da narrativa é o romance típico. Para o personagem, não é a narrativa de um crime, e sim de uma história de amor. E isso pode contribuir para formamos a nossa ideia de quem foi Dolores Haze – e em consequencia, qual teria sido, afinal, o seu pecado.
Ao iniciar suas memórias, descobrimos, por exemplo que Humbert nunca tinha se envolvido romanticamente com meninas, antes de Lolita. Seu envolvimento era mental, se atinha ao apelo visual. Humbert pondera que nem todas a meninas de 12 anos são ninfetas; existem aquelas que são apenas crianças. E existem aquelas cuja sexualidade se aflora precocemente – essas são as ninfas, na visão do personagem. Humbert se dizia capaz de reconhecer as ninfas à distância. Ele tinha total empatia com elas, admirava suas formas, mas era só. Até que ele conheceu Lolita.
Lolita era linda, tinha a idade certa, tinha a brejeirice e o encantamento de uma ninfa típica. E usava sua sexualidade como um brinquedo, ou uma descoberta. Isso é o que podemos inferir com certeza da descrição de Humbert. Lolita não era diferente de nenhuma das meninas de sua idade – pelo menos daquelas que já tinham uma certa consciencia de sua sexualidade. Lolita usava batons da mãe – que na época do romance eram vermellhos – borrava as unhas com esmalte, e gostava de provocar os meninos. Tinha uma atração especial pelo teatro e cinema, e pelos artistas. Adorava revistas, pirulitos, chicletes e óculos de gatinho. E afinal, que mal há nisso?
O mal, como podemos concluir, está no poder. Ou na ciencia de se ter poder. Lolita, além de tudo, era esperta. Percebeu imediatamente a influencia que exercia sobre Humbert e se envaidecera disso, como aconteceria com qualquer menina de sua idade. Toda garotinha já se “apaixonou” por alguem mais velho. Não era o caso de Lolita. Ela queria provocar, insinuar, brincar de deusa. Só escolhera o homem errado. Não podia imaginar que Humbert a levaria a sério. O discernimento ainda não era o seu forte, mas deveria ser o de Humbert.
A iniciação sexual de Lolita foi como a de toda garota de sua idade – precoce, mas “normal”. Num acampamento de férias, com garotos e garotas da mesma idade. Um exercicio de descoberta do sexo, da maneira de fazer ou de entreter com o sexo. A iniciação que Humbert não teve. E ele faz questao de frisar isso, após descrever a sua primeira relação sexual com Lolita: “Senhoras e Senhores do júri, eu nem fui o primeiro homem da vida dela”. O que quer dizer que, para Lolita, Humbert era um brinquedo como outro qualquer. Como qualquer menina de 12 anos, ela não tinha a exata medida do ato que cometera, ela apenas queria exercer o poder que sabia que tinha sobre Humbert.
Há ainda o contraponto de Lolita – a mãe dela, Charlote Haze: uma mulher madura e solitaria que se mantém em patamar de competição com a filha. Charlote se apaixona à primeira vista por Humbert e consegue convencê-lo a casar com ela – o que ele prontamente aceita fazer, apenas para ficar perto de Lolita. Então, além de corrupção de menor, Humbert ainda praticaria incesto – já que, do ponto de vista legal, ele é co-responsável por Lolita. Após a morte de Charlote – que sofre um acidente ao descobrir o verdadeiro objeto de desejo do marido - Humbert se coloca em posição de ataque – mas quem ataca, na verdade, é Lolita.
Para Lolita, Humbert representa um objeto de manipulação e de ódio. Lolita institivamente responsabiliza Humbert pela morte da mãe – o que não deixa de ser verdade. Ao mesmo tempo, Lolita considera que Humbert se aproveita do fato dela não ter mais ninguém para impor um envolvimento sexual entre os dois. Lolita enxerga o seu envolvimento com Humbert como uma paga, um favor sexual – em troca, ela o explora como pode. Esta reversão dos sentimentos de Lolita em relação ao padrastro pode ter a ver com a gradativa conscientização do erro que cometera ao escolher brincar com Humbert – mas também, pode significar o abandono de um brinquedo em favor de um sentimento real – o amor bandido pelo produtor teatral Claire Quilty, que representa a desculpa perfeita para Lolita fugir de Humbert.
Claire Quilty não é santo. É um homem acostumado a aliciar meninas para fazer filmes eróticos. Mas Lolita se apaixona por ele, e abandona Humbert. Até o final do livro, Lolita professa que Quilty foi o único amor de sua vida. Talvez por isso, Humbert decida matá-lo a tiros.
No final da historia, há a redenção de Humbert. Depois de anos procurando por Lolita, Humbert recebe uma carta da enteada, pedindo ajuda financeira. Ele vai até ela, e a encontra totalmente destituída do encanto da ninfa que um dia conhecera. Já maior de idade, a Lolita que Humbert encontra usa roupas de chita, pobre, míope, e grávida do atual marido, um jovem trabalhador com quem Humbert troca poucas palavras. Mas mesmo assim, Humbert a quer de volta. Embora plenamente consciente de que a ninfeta não existe mais, de que a menina se fora – Humbert não se envolvera com nenhuma outra ninfa: ele queria apenas e exclusivamente Lolita. Ele proprõe que ela volte com ele, mas Lolita se recusa. Diz que se fosse voltar para alguem, voltaria para Quilty, a quem amou de verdade. Lolita amadurecera. E Humbert, mesmo assim, ainda a amava.
Humbert deixa o dinheiro que Lolita pedira e sai para matar Quilty. Eles nunca mais se veem. Lolita morre no parto de sua filha. E Humbert morre na prisão, antes de cumprir sua pena capital. Humbert morre com a plena consciencia do que roubara de Lolita – a sua infancia. Não se arrepende de tê-la amado, mas de não tê-la esperado. É a culpa de suas proprias escolhas que o faz cometer o crime que o condenou. A ausencia de Lolita a seu lado. E principalmente, a ausencia de Lolita nas brincadeiras de roda, dos pula-corda, dos coros da igreja.
Ao morrer, a Lolita de Nabokov torna-se portanto, um mito. Um fetiche. Um exemplo. A menina que de inocente não tem nada – mas que ainda assim, é inocente. A precocidade sexual de Lolita, o seu ardil, a sua sapequice – nada justifca a atitude de Humbert. Ao final da narrativa, ele se dá conta disso. Mas Lolita não voltaria mais. E sua ambiguidade menina-mulher seria sempre o seu pecado, e o seu castigo.
*Vídeos: "LOLITA" (1997), versão para o cinema protagonizada por Jeremy Irons e Dominique Swain. Incorporados do youtube.
2 comentários:
Olá, Cláudia, obrigada pela dica e pela visita ao meu blog, volte sempre! Também adorei a ideia do teu blog, especialmente este post sobre a Lolita. Nunca li o livro, mas vi o filme e acho que tudo que tu falaste é perninente, adorei a crítica. Passei a segui-la e voltarei mais vezes! Beijos
Quando entrei neste blog para ler, pensei comigo: Lolita não pode faltar, ela deve estar por aqui!
E que surpresa encontrar sobre Lolita, uma postagem feita justo no dia do meu aniversário (24/04)!!! :)
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