Em Medéia, de Eurípedes (486 - 406 a.C), o desejo por esclusividade dá vazão a um instinto sombrio, uma primitividade aliada a um estado semi-divino, com um conhecimento profundo da magia de Hécate (deusa das feiticeiras). O resultado desse estado animalesco é a destruição de qualquer promessa de continuidade. Medéia, para quem não se lembra, é aquela que mata os dois filhos para se vingar do marido que a traíra. Eurípedes personifica a tragédia do infanticídio na pele de uma mulher atormentada, ciumenta, dissimulada, manipuladora, e violenta.
A monstruosidade do mito de Medéia paira, de certa maneira, em Senhora dos Afogados, tragédia escrita por Nelson Rodrigues em 1947 e censurada pela ditadura um ano depois. Nessa peça. além de distorcer novamente os alicerces da família, Nelson Rodrigues cria para o público um monstro do desejo exarcebado, na forma de uma mulher aparentemente fria, recatada e sóbria, que traz uma profunda e incetuosa paixão dentro de si, capaz de inspira-la na atrocidade maior - o assassinato de seu proprio sangue.
A monstruosidade do mito de Medéia paira, de certa maneira, em Senhora dos Afogados, tragédia escrita por Nelson Rodrigues em 1947 e censurada pela ditadura um ano depois. Nessa peça. além de distorcer novamente os alicerces da família, Nelson Rodrigues cria para o público um monstro do desejo exarcebado, na forma de uma mulher aparentemente fria, recatada e sóbria, que traz uma profunda e incetuosa paixão dentro de si, capaz de inspira-la na atrocidade maior - o assassinato de seu proprio sangue.
A trama gira em torno do desejo absoluto de duas personagens femininas, mãe e filha. A paixão de Moema é o proprio pai. Filha da voluptuosa estrangeira Eduarda e do manipulador Misael, Moema sofre com o proprio egocentrismo - deseja, a todo custo, a atenção do pai apenas para si. Tem problemas de relacionamento com a mãe - contudo, tem uma identificação sombria com ela: as duas movem as mãos sempre da mesma maneira e sempre ao mesmo tempo. A mão aqui simboliza a perpetuação do ato, sem o previo julgamento. A mão que bate, apanha, acusa, previne, mata. A mão da mãe que se move no corpo da filha, e vice-versa. É um exercício de poder, de manipulação, de castigo.
Com efeito, pelas mãos de Moema se dá o pecado da morte premeditada - para se fazer única aos olhos de Misael, Moema afoga as duas irmãs mais novas - Dora e Clara - no mar. O que nos leva a outro símbolo importante na peça de Rodrigues - o mar é citado como um dos personagens da peça, representando a imensidão, o infinito, o absoluto. Aquele contra o qual não se pode lutar. O mar atrai as meninas para a morte, atrai Moema para a consumação de sua natureza fundamental, o dom de matar.
Além do pai, outra figura masculina ronda a casa de Moema - seu noivo, um homem misterioso, descrito por Misael como o "deus das mulheres da vida": morador do cais, tem o corpo tatuado com nome de mulheres e parece ter uma relação de cumplicidade com o mar absoluto: "quando ele chega, Misael, eu sinto cheiro de mar nos meus cabelos", diz uma fascinada Eduarda. Mas o noivo tem outro misterio: a sua propria origem. Ele seria filho de uma amante de Misael, uma prostituta supostamente assassinada por ele a golpes de machado. O noivo, portanto passa a ter uma identidade: é filho bastardo de Misael. E ainda sustenta que a mãe, ao morrer, foi morar numa ilha no meio do mar, o inferno das prostitutas mortas, e que voltara da ilha para ver Misael. O noivo é a encarnação do mar - sedutor, manipulador, vingativo, fatal.
Não à toa, o noivo atrai, de formas distintas, as duas figuras femininas mais fortes da trama. Enquanto Moema se vê arrastada para o poder semi-divino do noivo, Eduarda sente-se sexualmente atraída por ele. O "amor" de Moema pelo noivo é assexuado, frio, beirando as amarras do respeito - representado no unico contato físico entre os dois, quando o noivo beija as mãos de Moema. Ambos tem ambições diferentes no noivado: Moema esconde atrás do noivado o seu delírio incestuoso; e o noivo usa a propria irmã para ter acesso ao pai, objeto do seu ódio. A vingança do noivo é seduzir Eduarda e tornar-se amante da esposa de seu pai. O que, poderoso e absoluto, consegue, carregando Eduarda para fora da casa do marido.
Moema vê na traumatica separação do pai uma oportunidade para realizar o desejo de se unir a Misael como filha, como mulher, e como assassina. Ela usa o seu crime para estreitar sua afinidade com Misael, já que ele também matara - confessa ao pai o assassinato das duas irmãs. Misael, embora chocado, sente-se amparado, ligado a alguem com o mesmo estigma que ele. Moema então procura convencer o pai a matar Eduarda já que ela o traíra. E procura tambem incitar o odio do sensível Paulo, seu irmão, contra o noivo-irmão bastardo. Assim, poderá finalmente ser a única mulher da casa. A obsessão de Moema é ser o mar - absoluto e poderoso, ao redor do qual os mortais gravitam. É o delírio dionisíaco, uma paixão sem limite, sem restrição moral.
Mas o mar, apesar de infinito, é singular. Profundamente só na sua vastidão. E este é exatamente o final de Moema. Misael, influenciado pela filha, segue Eduarda até o local onde ela está com o noivo e, enquanto este é apunhalado e morto por Paulo, Eduarda é arrastada até o cais, tendo as mãos decepadas pelo marido. Castrada em seu poder, Eduarda é tragada pelo mar e sangra até a morte, caindo com os braços estendidos na praia. Sua imagem sobrepoe-se à da filha no espelho, mas as duas perdem suas identidades, pois sem as mãos de Eduarda, os movimentos de ambas não coincidem mais. Quando a mãe desaparece, a filha também se anula. E a imagem de Moema deixa de refletir. A castração do poder feminino na peça representa a castração da monstro que provoca o hiato moral dos demais personagens. É a estratégia clássica de crime e castigo, junto ao código chauvinista da defesa da honra. A adultera e a tarada precisam desaparecer. O pecado precisa ser diluido em choque e piedade.
Misael, arrasado e arrependido, morre no colo de Moema. Esta, então, termina o ultimo ato completamente sozinha no palco, abandonada por todos os outros personagens - e com o poder que pedira, representado nas mãos das quais tenta agora se afastar.
Senhora dos Afogados é uma tragédia classica, à moda rodriguiana. Com todos os elementos teatrais da tragédia grega - o infinito versus o individuo, a falha moral, a catarse e o distanciamento; e estruturalmente, o palco dividido, o plano dos personagens, o uso da música através do coral das prostitutas, e o coro (ou o senso in-comum da história) na pele do grupo de vizinhos fofoqueiros e suas máscaras horrendas. O toque de Nelson Rodrigues, neste caso, é o enfoque na monstruosidade, na inevitável obsessão dos personagens, e não no conflito moral - este na verdade, não chega a influenciar a escolha fatal das protagonistas femininas da peça; como também a simbologia mítica das mãos, do mar, e da máscara - no coro rodriguiano, o rosto dos atores é a máscara, e as máscaras que eles colocam é que são os rostos verdadeiros. Todas as máscaras são feíssimas, ou então não seria Nelson Rodrigues.
Há ainda uma serie de referências canônicas neste texto de Rodrigues, além da Medéia de Eurípedes, que vale a pena comentar. A morte de Eduarda, à beira da água com as mãos cortadas, provavelmente alude a uma cena de Titus Andronicus, de Shakespeare, onde a filha de Titus é estuprada e mutilada na beira do lago. As Bacantes do mesmo Eurípedes parecem presença forte na construção dos personagens femininos da peça, além das protagonistas. E a travessia para a ilha das prostitutas mortas guarda uma leve semelhança ao mito grego do barqueiro Caronte, que levava as almas dos mortos até as portas do inferno - Paulo chega inclusive a dizer que encontrou um homem num barco em mar alto, enquanto procurava o corpo da irmã Clara. As referências ao canone e ao clássico se acumulam e se misturam ao lirismo e à cuidadosa escolha de palavras do texto. Mas tudo isso, é claro, combinado à visão ferina e ao estilo provocativo que marca o trabalho do autor maldito Nelson Rodrigues.
Poderíamos falar ainda de muitas outras mulheres transgressoras, fortes, manipuladoras e pervetidas que habitam o universo rodriguiano. Mas os quatro exemplos sobre os quais falamos aqui já dão conta do caminho percorrido por Nelson para alcançar a profundidade absoluta de caracterização das personagens. Entre a incipiente Lídia e A mulher sem pecado e a trágica Moema de Senhora do Afogados, e até depois destas, há uma série de outras personagens que, como dizia Rodrigues, "vive[m] a vida que devia ser a nossa; a vida que recusamos". E é com o aperitivo do lado pecador destas quatro personagens que encerramos a exposição da rajada de monstros fêmeas de Nelson Rodrigues.
Com efeito, pelas mãos de Moema se dá o pecado da morte premeditada - para se fazer única aos olhos de Misael, Moema afoga as duas irmãs mais novas - Dora e Clara - no mar. O que nos leva a outro símbolo importante na peça de Rodrigues - o mar é citado como um dos personagens da peça, representando a imensidão, o infinito, o absoluto. Aquele contra o qual não se pode lutar. O mar atrai as meninas para a morte, atrai Moema para a consumação de sua natureza fundamental, o dom de matar.
Além do pai, outra figura masculina ronda a casa de Moema - seu noivo, um homem misterioso, descrito por Misael como o "deus das mulheres da vida": morador do cais, tem o corpo tatuado com nome de mulheres e parece ter uma relação de cumplicidade com o mar absoluto: "quando ele chega, Misael, eu sinto cheiro de mar nos meus cabelos", diz uma fascinada Eduarda. Mas o noivo tem outro misterio: a sua propria origem. Ele seria filho de uma amante de Misael, uma prostituta supostamente assassinada por ele a golpes de machado. O noivo, portanto passa a ter uma identidade: é filho bastardo de Misael. E ainda sustenta que a mãe, ao morrer, foi morar numa ilha no meio do mar, o inferno das prostitutas mortas, e que voltara da ilha para ver Misael. O noivo é a encarnação do mar - sedutor, manipulador, vingativo, fatal.
Não à toa, o noivo atrai, de formas distintas, as duas figuras femininas mais fortes da trama. Enquanto Moema se vê arrastada para o poder semi-divino do noivo, Eduarda sente-se sexualmente atraída por ele. O "amor" de Moema pelo noivo é assexuado, frio, beirando as amarras do respeito - representado no unico contato físico entre os dois, quando o noivo beija as mãos de Moema. Ambos tem ambições diferentes no noivado: Moema esconde atrás do noivado o seu delírio incestuoso; e o noivo usa a propria irmã para ter acesso ao pai, objeto do seu ódio. A vingança do noivo é seduzir Eduarda e tornar-se amante da esposa de seu pai. O que, poderoso e absoluto, consegue, carregando Eduarda para fora da casa do marido.
Moema vê na traumatica separação do pai uma oportunidade para realizar o desejo de se unir a Misael como filha, como mulher, e como assassina. Ela usa o seu crime para estreitar sua afinidade com Misael, já que ele também matara - confessa ao pai o assassinato das duas irmãs. Misael, embora chocado, sente-se amparado, ligado a alguem com o mesmo estigma que ele. Moema então procura convencer o pai a matar Eduarda já que ela o traíra. E procura tambem incitar o odio do sensível Paulo, seu irmão, contra o noivo-irmão bastardo. Assim, poderá finalmente ser a única mulher da casa. A obsessão de Moema é ser o mar - absoluto e poderoso, ao redor do qual os mortais gravitam. É o delírio dionisíaco, uma paixão sem limite, sem restrição moral.
Mas o mar, apesar de infinito, é singular. Profundamente só na sua vastidão. E este é exatamente o final de Moema. Misael, influenciado pela filha, segue Eduarda até o local onde ela está com o noivo e, enquanto este é apunhalado e morto por Paulo, Eduarda é arrastada até o cais, tendo as mãos decepadas pelo marido. Castrada em seu poder, Eduarda é tragada pelo mar e sangra até a morte, caindo com os braços estendidos na praia. Sua imagem sobrepoe-se à da filha no espelho, mas as duas perdem suas identidades, pois sem as mãos de Eduarda, os movimentos de ambas não coincidem mais. Quando a mãe desaparece, a filha também se anula. E a imagem de Moema deixa de refletir. A castração do poder feminino na peça representa a castração da monstro que provoca o hiato moral dos demais personagens. É a estratégia clássica de crime e castigo, junto ao código chauvinista da defesa da honra. A adultera e a tarada precisam desaparecer. O pecado precisa ser diluido em choque e piedade.
Misael, arrasado e arrependido, morre no colo de Moema. Esta, então, termina o ultimo ato completamente sozinha no palco, abandonada por todos os outros personagens - e com o poder que pedira, representado nas mãos das quais tenta agora se afastar.
Senhora dos Afogados é uma tragédia classica, à moda rodriguiana. Com todos os elementos teatrais da tragédia grega - o infinito versus o individuo, a falha moral, a catarse e o distanciamento; e estruturalmente, o palco dividido, o plano dos personagens, o uso da música através do coral das prostitutas, e o coro (ou o senso in-comum da história) na pele do grupo de vizinhos fofoqueiros e suas máscaras horrendas. O toque de Nelson Rodrigues, neste caso, é o enfoque na monstruosidade, na inevitável obsessão dos personagens, e não no conflito moral - este na verdade, não chega a influenciar a escolha fatal das protagonistas femininas da peça; como também a simbologia mítica das mãos, do mar, e da máscara - no coro rodriguiano, o rosto dos atores é a máscara, e as máscaras que eles colocam é que são os rostos verdadeiros. Todas as máscaras são feíssimas, ou então não seria Nelson Rodrigues.
Há ainda uma serie de referências canônicas neste texto de Rodrigues, além da Medéia de Eurípedes, que vale a pena comentar. A morte de Eduarda, à beira da água com as mãos cortadas, provavelmente alude a uma cena de Titus Andronicus, de Shakespeare, onde a filha de Titus é estuprada e mutilada na beira do lago. As Bacantes do mesmo Eurípedes parecem presença forte na construção dos personagens femininos da peça, além das protagonistas. E a travessia para a ilha das prostitutas mortas guarda uma leve semelhança ao mito grego do barqueiro Caronte, que levava as almas dos mortos até as portas do inferno - Paulo chega inclusive a dizer que encontrou um homem num barco em mar alto, enquanto procurava o corpo da irmã Clara. As referências ao canone e ao clássico se acumulam e se misturam ao lirismo e à cuidadosa escolha de palavras do texto. Mas tudo isso, é claro, combinado à visão ferina e ao estilo provocativo que marca o trabalho do autor maldito Nelson Rodrigues.
Poderíamos falar ainda de muitas outras mulheres transgressoras, fortes, manipuladoras e pervetidas que habitam o universo rodriguiano. Mas os quatro exemplos sobre os quais falamos aqui já dão conta do caminho percorrido por Nelson para alcançar a profundidade absoluta de caracterização das personagens. Entre a incipiente Lídia e A mulher sem pecado e a trágica Moema de Senhora do Afogados, e até depois destas, há uma série de outras personagens que, como dizia Rodrigues, "vive[m] a vida que devia ser a nossa; a vida que recusamos". E é com o aperitivo do lado pecador destas quatro personagens que encerramos a exposição da rajada de monstros fêmeas de Nelson Rodrigues.