Quando eu tinha doze anos, meu pai me deixou andar de ônibus sozinha. Era uma distância pequena, mas a liberdade era grande. A maior que eu já tinha conseguido em casa. Nunca tinha me sentido tão dona de mim até então. Aos doze, independência era tudo e eu pensava – porque, na boa, eu não era mais criança, né?
Eu até já falava palavrão… desde os dez, na verdade. Mas nunca dentro de casa. Papai achava feio o baixo calão em boca de menina. Eu nunca dei a mínima, minhas amigas todas falavam. E eu nunca fui de levar desaforo para casa – assim, se você leva um coice, não vai mandar educadamente a pessoa lamber sabão. Eu, pelo menos, sempre preferi, com toda a educação, mandar a pessoa à merda…sabe, com uma enorme exclamação no final. É mais poderoso, é um recado que impõe respeito.
Mas eu falava do ônibus. Eu ia começar num curso de inglês às segundas e quartas. Então, quando chegou o domingo, nem dormi direito. Até escolhi a roupa que ia usar no dia seguinte, coisa que nunca faço. Nunca me antecipo, até hoje sou assim. Mas naquele dia estava ansiosa, apressada demais. Estranho...odiei me precipitar por toda a minha vida...mas nunca aos doze. Naquela idade tudo parecia estar tarde demais ou no máximo, mais do que na hora.
Escolhi a roupa que eu pensava combinar com minha grande estréia. Calça, blusa colando, saltos e tal. Impor respeito e chamar a atenção – não é o sonho de toda mulher? E sim, naquela véspera de inicio de semana, de liberdade, de independência, de vida, eu me sentia uma mulher feita. Crescida, que podia andar de ônibus sozinha, sem ninguém me seguindo por todo canto, indo me buscar. Eu pensava, dá um tempo, né? Ridículo meu pai me esperando na porta da escola todo dia! Todo mundo olhando, rindo de mim. Ninguém merece.
Mas aquilo, eu pensava, ia acabar.
Todos iam me ver como eu era: adulta. Eu estava me achando mesmo. Até me deitei cedo, para ver se o tempo passava mais rápido. Nunca torci tanto para segunda-feira chegar e eu ir logo para escola, para depois ir direto para o curso. SO-ZI-NHA.
Então, finalmente, o dia chegou. A mal-fadada, famigerada, maravilhosa, especial segunda-feira. Um dia que eu sabia que nunca iria esquecer. E não esqueci mesmo...
Para começar, perdi tempo demais na escola, me gabando com as meninas que eu ia ter que sair no horário para pegar o ônibus. E, lógico, perdi o ônibus. Levou quase vinte minutos para vir o outro. Resultado: cheguei no curso quando a aula já ia para metade. E ainda tive de andar um pouco mais depressa até o curso, porque o ponto onde eu tinha de saltar não era assim tão perto como era ir de carro. Resultado: cheguei suada, desarrumada, com a cara mais esbaforida do planeta, os olhos arregaladíssimos e pior, sem pintar! Acredita que eu tinha esquecido de passar o lápis?
Quando a aula acabou, eu fiquei na porta do curso gastando garganta, para que elas percebessem que eu iria sozinha para casa. Como eu previra, minhas novas amigas ficaram verdes. Mas quando elas foram embora, descobri que o ponto do meu ônibus não era na porta do curso como a carona do papai. Eu tinha que atravessar a rua e andar mais alguns metros para frente. Quando cheguei no ponto, havia um ônibus parado. Entrei.
Já estava sonhando como eu ia chegar em casa absoluta, contando para o meu pai como eu me comportei, me virei, andei, entrei e saí. Eu pensava que era um gênio mesmo, uma adolescente precoce, independente e sensacional. Sorria, pensando no orgulho que meu pai teria de mim. Então acordei de repente, e olhei pela janela.
Não reconheci uma casa, uma arvore, nem uma mosca sequer, num raio de dez metros. Percebi umas curvas enquanto sonhava mas, quando pensei melhor, entendi que havia mesmo curvas demais. Eu não morava tão longe assim.
Tinha pego o ônibus errado. Era a mesma cor, mas outra linha. Não era o ônibus que levava para minha casa. Pela primeira vez, senti um frio na barriga. Pior, senti que tinha feito uma merda enorme. Estava num lugar que eu não tinha a menor idéia e também não sabia como voltar. Pior, se eu conseguisse chegar em casa até o Natal, meu pai nunca, note bem, NUN-CA, iria me deixar sair sozinha de novo. Merda, merda, que MERDA...era só o que me passava pela cabeça.
Saltei do ônibus, num bairro qualquer. Já estava escurecendo, e eu estava perdida, de tudo: não sabia onde estava nem porque eu estava ali, muito menos como eu ia fazer o caminho de volta. E tudo por absoluta falta de atenção. Me achei o máximo, apareci para todas as minhas amigas e, no fim, cadê elas? Naquele buraco comigo é que não estavam, pensava. Tinha vontade de chorar, mas não podia. Eu pensava, sou adulta, sei o que eu estou fazendo. Posso resolver isso quando eu quiser.
Mas, depois de meia-hora naquele fim de mundo esperando um carro, um ônibus, um qualquer coisa com rodas – e NADA, eu chutei o balde. Finalmente pensei: não resolvo coisa nenhuma! Eu não sou adulta coisa nenhuma! Eu estou só, mas que merda é estar só. O que que eu vou fazer?
Só tinha dinheiro para o ônibus, táxi naquele momento era caro demais pra mim e, vamos combinar, naquele buraco não ia passar táxi nenhum mesmo. Pior, o ônibus que eu peguei não passava de volta nunca e pior ainda, tinha uma criatura mal-encarada, velha, banguela e do sexo masculino parada do outro lado da rua, me olhando. Resumindo: atalho, facilidade, nem pensar. Deixei tudo isso em casa, e mais: comodidade, conforto, bons conselhos, experiência. E pior, meu pai. Deixei meu pai em casa.
De repente, uma música. Conhecia aquele som de algum lugar. Parecia vir de dentro de mim. Algum som que eu gostava muito e que vibrava...na minha bolsa! Claro, mas que idiota!
Só lembrei do celular quando ele estava tocando. Era meu pai, claro. Fazia muito mais de hora que eu deveria estar em casa. E ele já tinha ligado varias vezes e para todas as minhas amigas. Ótimo, pensei, agora o mundo inteiro sabe que eu estou perdida por aí. E por que não atendi antes? Estava sonhando, pai. Quer dizer, pensando, desesperando, chorando. Quer dizer, eu ia te ligar agora mesmo, você leu meu pensamento?
Expliquei tudo e meu pai pediu para eu entrar em algum lugar movimentado. Entrei no único lugar com mais de uma pessoa – na verdade duas, além do cara no balcão. Ele pediu para eu perguntar onde eu estava para alguém. Pedi informação ao “barman” e passei tudo pro meu pai. Então ele disse que eu esperasse lá que ele iria me buscar.
Nunca fui tão independente. Nunca escolhi tanto como passar meu tempo. Nunca percorri distancias tão grandes, nem entrei em tantos caminhos – errados. Nunca me senti tão sozinha. Esquisita a liberdade, ás vezes. Acho que descobri que nada nunca é simples.
Tudo por causa de uma mal-fadada, fantástica, reveladora, assustadora segunda-feira. E o melhor é que, depois de tudo, eu acabei voltando para casa na carona do papai. Que mico.
Mas tudo bem. Como eu disse, aprendi muita coisa. Hoje, com treze anos, estou muito mais madura.
3 comentários:
Adorei essa parte hilária da sua vida. Estou aqui lendo para meu marido e estamos comentando como nos sentimos mal quando não conseguimos fazer jus a uma conquista de liberdade né???
Parabens pela postagem! Amei mesmo!
Cladinha,
Gostei muito do texto!!Parabéns!!!
Grata por sua visita, volte sempre!
Tenha uma ótima semana...
Beijos,
Reggina Moon
Adoro memórias.
Agente vai aprendendo com o tempo e vendo o tanto de erros q cometeu.
Isso mostra evolução. Eu acho!
Beijos
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