Lìvia - um grande amor que durou seis meses
Nesse último fascículo, vamos falar daquela que é a proto-femea machadiana, ou seja, aquela que serviu de substrato para as demais personagens femininas do universo machadiano, algumas das quais achamos interessante apontar aqui no blog. Trata-se de Lívia, protagonista de Ressurreição (1872), que foi o primeiro romance publicado por Machado de Assis. Já nesta primeira construção do universo feminino, percebemos as caracteristicas incipientes que se tornaria a essencia da mulher machadiana: força, personalidade, beleza e um espirito ambíguo, nem tão passivo e nem tão questionador.
Livia é viuva, e tem um filho ainda menino. Vai morar na casa do irmão Viana depois da morte do marido, e lá se apaixona por Felix, um médico ainda jovem e cobiçado, mas desacreditado do amor. A paixão entre os dois, no entanto, se transforma no que hoje chamaríamos de "romance iô-iô", cheio de indas e vindas, principalmente por causa do ciume excessivo de Felix, fruto de sua insegurança e da falta de fé nas mulheres.
Lívia, sempre centrada e inteligente, tenta equilibrar o descompasso emocional do amado com perdão e benevolência, mas Felix invariavelmente se deixa influenciar por qualquer pessoa que reacenda nele a desconfiança no amor e no ser amado - neste caso, a mulher.
A narrativa é pautada pelas observações do narrador sobre a psicologia dos personagens. Isto é importante para entendermos a arrogância e a imaturidade de Felix - o anti-herói, o principe virado do avesso; em contraste com a magnanimidade e a tolerância de Lívia, uma mulher com uma certa experiência do universo masculino, que já fora casada, que já tinha um filho. Uma mulher para quem a descoberta do corpo e do jogo amoroso não é mais a questão. Uma mulher dificil de surpreender, com uma total consciencia do seu "poder". Essa mulher que fascina Felix, também soa para ele como uma ameaça, porque se trata de alguém cuja inocencia não pode mais ser moldada, nem recuperada. Não estaria aí a origem de suas preocupações?
Ao mesmo tempo que a ama, Felix se sente rivalizado por ela. E então, sucumbe a toda e qualquer insinuação a seu respeito - uma carta anonima, uma "confissão" deturpada, um veneno de donzela. Sim, temos nesta historia também a fofoca, a maledicência gratuita de Rachel, prima de Lívia e apaixonada por Felix que, como um Iago de saias, envenena gradualmente o ouvido de Felix sugerindo um caso entre Livia e Meneses, outro amigo da família, que de fato nutre uma paixão pela protagonista.
É muito interesse a inversão de papeis dos personagens femininos, Rachel com sua inocencia transformada em malícia, e Lívia com sua experiencia transformada em pecado. Lívia sofre, basicamente, porque não consegue enterrar o passado - isto é, o fato de já ter sido a esposa de alguem. O sexo tem um papel muito importante nessa narrativa de Machado, pois precipita uma serie de pré-julgamentos, sobretudo da parte de Felix. A viuvez de Lívia, aliada à sua beleza e juventude, pressupoe uma liberdade que não agrada ao médico. De forma que, diante da mínima possibilidade, tudo volta ao ponto de partida: Lívia não seria digna de confiança.
Depois de alguns meses, e muitas desavenças, Felix e Lívia marcam o casamento. Livia espera que o compromisso ajude o namorado a confiar nela. Mas, dois dias antes do casamento, Felix recebe uma carta dizendo que o primeiro marido de Lívia fora infeliz por causa dela, e que ele também seria. É o bastante para que ele desista de casar, rompendo com Lívia através de um bilhete.
Quando escrevi minha dissertação sobre o Otelo de Shakespeare, ponderei sobre um aspecto da personalidade masculina que chamei de cornofobia, que denomina um pavor patológico de ser traído. Esse aspecto cai como uma luva no caso de Livia que, assim como Desdêmona, não merece tal acusação. Os altos e baixos no romance entre Lívia e Felix denotam uma total estereotipação do comportamento feminino, tal qual no drama shakespeariano, em que a mulher figura sempre com um ser perigoso, volúvel, dissimulado. O pecado de Lívia é, portanto, a sua propria imagem, e o que ela inspira - desprendimento, segurança, desejo.
No final do romance, a farsa da carta que Felix recebera é descoberta, e ele quer retomar o romance com Livia. Mas, depois de tantas decepçõe, Lívia não o aceita mais. Apesar de amá-lo - e a narrativa sugere, através de uma passagem de tempo de dez anos, que Lívia sempre amará Felix - Lívia sabe que não pode cura-lo de si mesmo. Um embate sem vencedores. A paixão de Felix esfria; o amor de Lívia se solidifica. Mas Lívia canaliza esse amor para o filho, para o qual passa a se dedicar em tempo integral. O abandono dessa parte de si mesma funciona, para ela, como o abandono do sofrimento, da recusa, do desespero. É um renascimento em favor do que importa, da construção de uma mulher amadurecida mas independente, sem as agruras do convivio amoroso - e por conseguinte, sem a exposição às mazelas da sociedade.
3 comentários:
CLAUDINHA MONTEIRO,
parabéns pela sua postagem.
Lívia de Ressureição, há muito tempo não via um blog citando e recriando o grande Machado de Assis.
Vou indicar seu blogs aos meus alunos universitários.
É isso que o pessoal precisa ler.
Boa informação.
Claudinha eu tenho um blog de humor: "Humor em texto", se puder da uma passadinha por lá.
Quem sabe você goste.
Um abração carioca.
CLAUDINHA MONTEIRO,
JÁ SOU SEU SEGUIDOR.
NO MEU PERFIL, VERÁS QUE TENHO MAIS 2 BLOGS.
ADORO NELSON RODRIGUES, MESMO!!!!
JÁ FIZ UMA POSTAGEM SOBRE ELE, MAS A SUA VAI SER UMA BELEZA.
TENHO CERTEZA.
ESTOU LIGADO!
UM ABRAÇÃO CARIOCA.
PS. DESCULPE A CAIXA ALTA MAS TIVE PROBLEMA NO MEU TECLADO.
Adorei!!
Gostei da personalidade da protagonista Lívia, porque ela foi muito forte. No passado, as mulheres viúvas, principalmente as novas, tinham que arranjar um marido, para não ficarem "faladas".
Ainda mais nesse episódio, onde o ciúme do Félix e a fofoca da Rachel, tinham tudo para empurra-la para um novo casamento, apenas para tapar a boca da sociedade.
Gosto muito da obra do Machado de Assis.
Um grande abraço. Tenha uma bela semana.
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