E o que dizer de Aurélia Camargo? Este blog jamais poderia passar sem uma análise sobre uma das personagens mais polêmicas de José de Alencar. No romance Senhora (1875), José de Alencar trabalha a personalidade fragmentada de seus personagens, conflitando romantismo e oportunismo, sentimento e necessidade e ambição. O casal protagonista, Fernando Seixas e Aurelia Camargo, oscila entre a paixão e o ódio, contrapondo um sonho de amor romantico com a realidade financeira de ambos. Em Aurélia Camargo, esta fragmentação se materializa na forma de uma herança que a faz enriquecer de uma hora para outra, e inaugura dentro dela o melhor e o pior de todos os sentimentos.
O pecado de Aurelia é o pecado de parte da sociedade: a comercialização das instituições, sob pena de se reprimir a propria individualidade. A moça simples do suburbio, que é influenciada pela mãe a procurar um noivo, consegue aliar amor e necessidade ao se tornar noiva de Fernando Seixas. Fernando, porém, se arrepende do compromisso com Aurélia quando passa ele mesmo por dificuldades financeiras e percebe que o casamento com a moça só lhe traria mais despesas. Depois de conseguir um acordo de casamento com um dote de 30 mil contos de réis, Fernando abandona Aurélia. Pouco tempo depois, Aurélia descobre que o avô paterno, que ela não conhecia, é dono de uma imensa fortuna e que ela se tornaria na herdeira universal de todos os seus bens. Com a morte da mãe e do avô, Aurélia se torna uma das jovens mais ricas da corte do Rio de Janeiro, deixada sob a tutela do tio, Senhor Lemos.
A partir do recebimento da herança é que começa o processo de fragmentação da personalidade da protagonista. Para se vingar de Fernando, Aurélia negocia por intermédio de Lemos o seu proprio casamento, propondo a Fernando um dote de cem mil contos de réis, que ele deve aceitar sob a condição de não conhecer a identidade da noiva até o dia da cerimônia. Movido pelo interesse, Fernando aceita o "negócio", sem imaginar de quem se trata. Ao descobrir a verdade, Fernando até se alegra, pois ainda ama Aurélia. Mas, na noite de núpcias, Aurelia se recusa a dormir com ele, acusando-o de ter se vendido. Aurelia diz a Fernando que ele agora é sua propriedade tanto quanto todos os seus outros bens, pois o comprara por cem mil contos de réis.
É importante entender que, na dinâmica social da época, era muito comum o casamento arranjado com pagamento de dote. Era uma atitude esperada das famílias. Aurelia usa esse subterfúgio a seu favor, mas a crítica ao sistema é muito clara. O sarcasmo com que a protagonista "compra" o seu marido deixa evidente o seu desgosto com a comercialização do amor, onde o casamento é usado principalmente para traficar interesses. Aurélia oscila entre a paixão pelo marido e a decepção pela importancia do dinheiro numa união que poderia ter sido por amor. O interessante é que a ambição de Fernando não é maior nem menor do que a de qualquer outro homem da época. Rapazes de boa familia ou com boa educação sempre eram disputados pelos pais das moças em idade de casar. O tamanho do dote era o diferencial entre as pretendentes. O desgaste dessa prática na sociedade moderna é que torna a ambição de Fernando desmedida. Mas, para Aurélia, esse desgate vem ainda no contexto social em que ela se inseria - o que significa que a sua visão de mundo era bem mais moderna do que o seu proprio mundo.
Além disso, Aurelia toma para si alguns padrões de comportamento tipicamente masculinos - competiçao, objetividade, agressividade, cinismo. José de Alencar mescla bem essas características com uma certa melancolia, e uma capacidade de distorcer os proprios sentimentos. Durante toda a segunda parte do livro, Aurélia maltrata Fernando mas, ao mesmo tempo, há uma profunda mágoa por trás do seu sarcasmo. Já Fernando tenta recuperar a dignidade que considera perdida, levantando a quantia que Aurelia pagara por ele - não se sente diminuído porque aceitara o dote, mas porque não conseguira transformar Aurélia no premio que esperava. No casamento arranjado, o pai da noiva dá o dote, e a noiva dá a si mesma - como um presente pela escolha do marido. A partir do momento que Aurelia recusa as nupcias, Fernando não se sente um homem presenteado, cuja ação de aceitar o dote daquela mulher tenha sido valorizada. A sua virilidade se torna uma ferida, e o dinheiro de Aurélia é diretamente responsável por ela. Então ele se dedica a juntar cada centavo que ganhou de volta, para recuperar o que acredita ter perdido.
Aurélia sabe que só pode atingir Fernando na sua libido, mas mesmo assim, o deseja para si. Seu desejo esbarra em seu orgulho, em sua vontade de fazê-lo desprezar o código social que os separou. As posições de Fernando e Aurélia se invertem - ela tem o poder, ele não. Alencar usa a ironia da situação para criticar o capitalismo institucional que assola o sistema sócio-político de sua época. E ainda adapta essa critica ao estilo romantico, exacerbando o conflito emocional dos personagens, e por conseguinte, reforçando-os na sua individualidade, na sua auto-representação.
A batalha de egos e de sexos em que se transforma o casamento de Aurélia e Fernando se resume na ultima parte do livro, quando Fernando finalmente consegue comprar-se de volta. Ao vê-lo recuperar a dignidade, Aurélia confessa seu amor, mas Fernando diz que o dinheiro sempre estará entre eles. É hora de Aurélia ceder. Ela mostra a Fernando o testamento que fizera deixando toda a sua fortuna para ele. Pronto. Fernando recupera o poder, a dignidade e então, sente-se pronto para recuperar Aurélia que, por sua vez, decide entregar-se ao marido. Tudo volta ao seu lugar. Não é a intenção de Alencar reverter padrões e sim discuti-los, talvez reformulá-los. A saída romantica para a trama faz exatamente isso: levanta questões que não necessariamente se respondem.
Por outro lado, a saída romantica nos chama atenção para a construção dúbia de Aurélia, para a sua individualidade incomum, para a sua profunda atitude de escárnio diante do seu proprio ambiente. Ainda que no final ela volte para o marido, ela o fez nos seus termos, provocando em Fernando a mesma expressão individual que ela exige de si mesma. A narrativa de Alencar é direcionada para os conflitos dos personagens, a critica social funcionando como um cenário para o relacionamento dos protagonistas. E Aurelia perde, vence, luta, se entrega e no meio do caminho, destila o seu pecado na frente do leitor: o de ser corajosamente ela mesma.
Um comentário:
Linda, estive aqui e voltei para comentar... Teu blog tá mto fofo, encantador... mas não é só isso, é interessante, informativo, bem humorado... adorei tudo que vi e li!
Bjo Gde!
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