Cru.ci.ble. 1. Vaso de argila refratária, porcelana, grafita, ferro ou platina, geralmente em forma de tronco de cone, e próprio para nele se fundirem metais e outros minerais; crisol. 2. Parte do forno em que se realiza a fusão. 3. (fig.) Prova severa.
Fonte: Dicionário Michaelis
Conforme já antecipamos, a história que Arthur Miller desenvolveu para a peça The Crucible foi, em parte, inspirada por fatos que ocorreram nos primórdios da história americana. O julgamento das bruxas em Salém, Massachussets - e principalmente, a participação crucial de uma menina de 12 anos naqueles acontecimentos, funcionaram como um gatilho para Miller conceber os personagens de The Crucible - mas, sobretudo, para construir um carater, uma personalidade e uma motivação por trás das ações de Abigail Williams, a garotinha da vida real transformada na adolescente ardilosa que protagoniza a trama de Miller.
No inicio da peça, o Reverendo Samuel Parris surpreende um grupo de meninas na floresta participando de um circulo de magia liderado por sua própria escrava, uma índia chamada Tituba. Entre as meninas estavam sua sobrinha Abigail Williams e sua filha, Betty Parris - além de Ann Putnam Jr., sua dama de companhia Mercy Lewis, e a empregada da familía Proctor, Mary Warren. Todas entre 17 e 18 anos, em idade de paixonites agudas e planos de casamento. Por isso mesmo, o objetivo original seria aprender poçoes e feitiços amorosos. Mas o cenário encontrado pelo Rev. Parris era extremamente propício para se suspeitar de rituais de bruxaria. Ainda mais com uma mulher (!) de origem indígena (!!) envolvida no epísodio.
Há varios aspectos nesta história que poderiam suscitar revolta e exaspero. Primeiro, não podemos esquecer que a trama é ambientada em tempo e lugar exatamente iguais aos da vida real - isto é, Massachussets, 1690. Naquela época, a religião predominante era o Puritanismo, uma doutrina profundamente ortodoxa, com dogmas rígidos. Magia, por mais inofensiva que fosse, era influencia do diabo; ainda mais se praticada por um membro completamente discriminado da comunidade: o índio. É sabido que durante o período colonial americano, os indios e os imigrantes europeus que ocuparam o território da Nova Inglaterra (hoje EUA) travavam batalhas sangrentas pela posse da terra. A escravidão indígena advém desses confrontos. Ainda que Tituba tenha sido comprada pelo Rev. Parris na America Central, a sua origem indígena suscita o mesmo preconceito que existia contra os nativos americanos. De maneira que a suspeita de uma india fazer bruxaria com meninas brancas na Massachussets de 1690 tem o efeito de uma bomba.
Essa situação se torna um caldeirão fervente, explodindo preconceito e perseguição por todos os lados - é preciso espantar o mal da comunidade. E é aí que entra o ardil da jovem Abigail Williams. Numa das primeiras aparições de John Proctor na trama - quando ele vai visitar Betty Parris, que cai miteriosamente doente - o público descobre que ele e Abigail tiveram um romance extra-conjugal quando ela trabalhava para os Proctor. A esposa de John, Elizabeth Proctor, havia expulsado Abigail depois de descobrir o caso. John não se dispusera a separar-se da mulher - mas Abigail acreditava sinceramente que ele ainda a amava e por isso, odiava Elizabeth intensamente.
Esperta e dissimulada, Abigail percebe que pode reverter a situação envolvendo ela e as meninas encontradas na floresta a seu favor, e engendra uma cama de gato em cima do episódio para enredar Elizabeth Proctor numa grave acusação de bruxaria. Como um Iago de saias, a Abigail de Miller se aproveita da súbita doença da prima Betty Parris e induz não somente Betty, como todas as meninas presentes naquele 'evento' a gritarem, espernearem, contorcerem-se de dor e jurar por Deus que estavam sendo atormentadas por espectros de determinados moradores da comunidade. Dessa maneira, Abigail pretendia criar uma cortina de fumaça para esconder no meio de vários acusados aquela que era o seu único alvo.
Ao conduzir a trama por esse viés, Miller constrói para Abigail uma personalidade ao mesmo tempo sedutora e ambiciosa, como também articuladora. Abigail é uma líder, influencia fortemente o grupo de meninas à sua volta e também usa pequenos e inusitados acontecimentos para reforçar o seu caso contra os moradores acusados. Por exemplo, Abigail presencia Mary Warren fazendo uma boneca de pano para a patroa Elizabeth Proctor, e nota que ao terminar o trabalho Mary deixa sua agulha espetada na barriga da boneca. Mais tarde, Abigail finge contorcer-se de dor na barriga para que todos pensem que ela está sendo vítima de vodu. De forma que quando a boneca é encontrada nos pertences de Elizabeth Proctor, esta funcione como evidência de prática de bruxaria.
Junta-se a isso o fato de John Proctor não freqüentar assiduamente a igreja e não recitar facilmente os dez mandamentos – especialmente o último, “não cometerás adultério”- e a família inteira se vê em maus lençóis. Paralelamente, Abigail consegue convencer Tituba a preparar uma poção venenosa para matar Elizabeth. A Abigail de Miller, portanto, é mais velha, com motivos mais complexos e uma capacidade de articulação e competição incomuns de se presenciar numa mulher daquela época – embora fosse comum acreditar que as mulheres pudessem fazê-lo secretamente ou em pensamento. Geralmente, mulheres assumidamente artimanhosas e de personalidade forte eram marginalizadas como bruxas ou prostitutas.
Curiosamente, a Abigail de Miller transita em ambos os pólos. Enfrentando no inicio da trama a suspeita de bruxaria, também se confirma, por ocasião do julgamento de Elizabeth Proctor, o seu adultério com John Proctor – o que em qualquer comunidade teocrática equivale a uma acusação de prostituição.
Claro que as acusações de Abigail não ganharam força unicamente pelo seu carisma. O julgamento das bruxas/bruxos de Salém ganhou contornos políticos também na trama de Miller. Havia interesses de moradores locais, como os Putnam, que incitam sua filha Ann a acusar as parteiras da comunidade de bruxaria – porque sua mãe havia perdido vários filhos no parto e precisava de consolo; Ann também acusaria a esposa do vizinho dos Putnam, Martha Corey, porque assim os Corey poderiam perder as suas terras e os Putnam as adquiririam. Havia também o interesse dos juízes do caso em se promoverem às custas de condenações deste nível, aproveitando-se do fanatismo religioso local. No âmbito off-palco, há ainda o fato de Miller ter escrito a peça como uma alegoria a um outro fato histórico - a “Caça às Bruxas” que aconteceu nos anos 50 nos EUA, quando o senador republicano John McCarthy criou uma lista negra de acusados de apoiarem o regime comunista da então União Soviética. O próprio Miller teria sido interrogado e estimulado a dedurar supostos amantes do regime.
De fato, em The Crucible, aquele que confessava-se bruxo(a) escapava da morte. Quem se professava inocente, era condenado com base nas evidencias das meninas “influenciadas”, lideradas por Abigail. Os condenados morriam enforcados; os confessos morreriam de velhos na prisão. E os que se recusavam a professar culpa ou inocência, mantendo-se em silêncio, eram torturados até a morte - mas mantinham seu bom nome e suas posses, já que sem manifestação nada poderia ser provado.
E é pelo próprio sistema de julgamento que o estratagema de Abigail começa a ruir. Membros respeitados na comunidade começam a morrer em silêncio, sem alegarem nem culpa nem inocência; na rede de interesses criada em volta do episódio, o próprio John Proctor é acusado por um ex-amigo e preso; e Elizabeth Proctor, presa e condenada pelas mãos de Abigail, acaba escapando da morte ao descobrir-se grávida. A mesma sorte não tem seu marido, que marcha para a forca sem confessar culpa.
Diante da crescente insatisfação dos moradores com condenações sem provas, a causa das meninas começa a perder força e Abigail se vê acuada. No final da trama, ela rouba um bom dinheiro do tio e foge num barco com Mercy Lewis; Miller neste ponto prefere ser fiel à lenda de que a menina Abigail teria se prostituído em Boston, e escolhe o mesmo final para sua personagem.
A Abigail Williams criada por Miller tem todas as características de uma vilã clássica. Mas é em volta dela que toda a trama de The Crucible se desenvolve. É a história de uma mulher obcecada, forte e com uma enorme falha de caráter, que coloca toda uma cidade a mercê de sua vingança. Uma anti-heroína, que perde redondamente ao ver seu amor condenado à forca e sua desafeta sobreviver com um filho dele no ventre. Á Abigail resta usar sua sedução em outro lugar – desta vez, para sua própria sobrevivência.
Esperta e dissimulada, Abigail percebe que pode reverter a situação envolvendo ela e as meninas encontradas na floresta a seu favor, e engendra uma cama de gato em cima do episódio para enredar Elizabeth Proctor numa grave acusação de bruxaria. Como um Iago de saias, a Abigail de Miller se aproveita da súbita doença da prima Betty Parris e induz não somente Betty, como todas as meninas presentes naquele 'evento' a gritarem, espernearem, contorcerem-se de dor e jurar por Deus que estavam sendo atormentadas por espectros de determinados moradores da comunidade. Dessa maneira, Abigail pretendia criar uma cortina de fumaça para esconder no meio de vários acusados aquela que era o seu único alvo.
Ao conduzir a trama por esse viés, Miller constrói para Abigail uma personalidade ao mesmo tempo sedutora e ambiciosa, como também articuladora. Abigail é uma líder, influencia fortemente o grupo de meninas à sua volta e também usa pequenos e inusitados acontecimentos para reforçar o seu caso contra os moradores acusados. Por exemplo, Abigail presencia Mary Warren fazendo uma boneca de pano para a patroa Elizabeth Proctor, e nota que ao terminar o trabalho Mary deixa sua agulha espetada na barriga da boneca. Mais tarde, Abigail finge contorcer-se de dor na barriga para que todos pensem que ela está sendo vítima de vodu. De forma que quando a boneca é encontrada nos pertences de Elizabeth Proctor, esta funcione como evidência de prática de bruxaria.
Junta-se a isso o fato de John Proctor não freqüentar assiduamente a igreja e não recitar facilmente os dez mandamentos – especialmente o último, “não cometerás adultério”- e a família inteira se vê em maus lençóis. Paralelamente, Abigail consegue convencer Tituba a preparar uma poção venenosa para matar Elizabeth. A Abigail de Miller, portanto, é mais velha, com motivos mais complexos e uma capacidade de articulação e competição incomuns de se presenciar numa mulher daquela época – embora fosse comum acreditar que as mulheres pudessem fazê-lo secretamente ou em pensamento. Geralmente, mulheres assumidamente artimanhosas e de personalidade forte eram marginalizadas como bruxas ou prostitutas.
Curiosamente, a Abigail de Miller transita em ambos os pólos. Enfrentando no inicio da trama a suspeita de bruxaria, também se confirma, por ocasião do julgamento de Elizabeth Proctor, o seu adultério com John Proctor – o que em qualquer comunidade teocrática equivale a uma acusação de prostituição.
Claro que as acusações de Abigail não ganharam força unicamente pelo seu carisma. O julgamento das bruxas/bruxos de Salém ganhou contornos políticos também na trama de Miller. Havia interesses de moradores locais, como os Putnam, que incitam sua filha Ann a acusar as parteiras da comunidade de bruxaria – porque sua mãe havia perdido vários filhos no parto e precisava de consolo; Ann também acusaria a esposa do vizinho dos Putnam, Martha Corey, porque assim os Corey poderiam perder as suas terras e os Putnam as adquiririam. Havia também o interesse dos juízes do caso em se promoverem às custas de condenações deste nível, aproveitando-se do fanatismo religioso local. No âmbito off-palco, há ainda o fato de Miller ter escrito a peça como uma alegoria a um outro fato histórico - a “Caça às Bruxas” que aconteceu nos anos 50 nos EUA, quando o senador republicano John McCarthy criou uma lista negra de acusados de apoiarem o regime comunista da então União Soviética. O próprio Miller teria sido interrogado e estimulado a dedurar supostos amantes do regime.
De fato, em The Crucible, aquele que confessava-se bruxo(a) escapava da morte. Quem se professava inocente, era condenado com base nas evidencias das meninas “influenciadas”, lideradas por Abigail. Os condenados morriam enforcados; os confessos morreriam de velhos na prisão. E os que se recusavam a professar culpa ou inocência, mantendo-se em silêncio, eram torturados até a morte - mas mantinham seu bom nome e suas posses, já que sem manifestação nada poderia ser provado.
E é pelo próprio sistema de julgamento que o estratagema de Abigail começa a ruir. Membros respeitados na comunidade começam a morrer em silêncio, sem alegarem nem culpa nem inocência; na rede de interesses criada em volta do episódio, o próprio John Proctor é acusado por um ex-amigo e preso; e Elizabeth Proctor, presa e condenada pelas mãos de Abigail, acaba escapando da morte ao descobrir-se grávida. A mesma sorte não tem seu marido, que marcha para a forca sem confessar culpa.
Diante da crescente insatisfação dos moradores com condenações sem provas, a causa das meninas começa a perder força e Abigail se vê acuada. No final da trama, ela rouba um bom dinheiro do tio e foge num barco com Mercy Lewis; Miller neste ponto prefere ser fiel à lenda de que a menina Abigail teria se prostituído em Boston, e escolhe o mesmo final para sua personagem.
A Abigail Williams criada por Miller tem todas as características de uma vilã clássica. Mas é em volta dela que toda a trama de The Crucible se desenvolve. É a história de uma mulher obcecada, forte e com uma enorme falha de caráter, que coloca toda uma cidade a mercê de sua vingança. Uma anti-heroína, que perde redondamente ao ver seu amor condenado à forca e sua desafeta sobreviver com um filho dele no ventre. Á Abigail resta usar sua sedução em outro lugar – desta vez, para sua própria sobrevivência.
2 comentários:
Cara Amiga
Conheci-te através do Porto das Crónicas da nossa Tais. Vim ao teu blogue e gostei. Convido-te, por isso, a visitar a Minha Travessa e seres seguidora dela, o que desde já te agradeço.
Desculpa a chatice que te possa causar este ‘tuga desavergonhado e escrevinhador. Também ando pelo Facebook, o que quer dizer que estou aposentado, mas vivo. E tão bem disposto quanto seja possível…
Qjs = queijinhos = beijinhos
hi, new to the site, thanks.
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