"Ó desgraçado assassino! O que tamanho idiota faz com tão boa mulher?"
A respeito do drama trágico Otelo, o mouro de Veneza (1603), de W. Shakespeare, Carol Thomas Neely (1983) afirma que temas corriqueiramente cômicos - amor, fofoca, casamento - são transfigurados para o trágico justamente porque desenvolvem-se na trama formas extremas de idealização e de degradação do amor e da sexualidade, de forma que toda a ação está centrada em uma situação-limite, isto é, o total desaparecimento da referência feminina na trama, em favor de um mundo onde impera exclusivamente o poder masculino que, segundo Neely, inclui competitividade, hostilidade, e uma moral restrita, impermeável à natureza da mulher. Neely faz uma bela análise do relacionamento que se desenvolve entre os protagonistas, o general negro Otelo e a dama branca Desdêmona, diferenciando as expectativas amorosas de ambos ao assumirem um romance fora dos padrões da sociedade em que viviam. As diferenças expostas por Neely passam exatamente por uma radical idealização da figura feminina, representada na imagem que Otelo criou de Desdêmona, como também pela radical degradação dessa mesma imagem, a partir do momento em que o alferes Iago, empregado de Otelo, transforma uma simples fofoca numa verdade incontestável.
A personagem Desdêmona nos parece o perfeito bode expiatório tanto para a idealização quanto para a degradação da figura feminina nesta tragédia de Shakespeare. A peça já se inicia com Iago articulando uma forma de dar o alarme da fuga de Desdêmona com Otelo. Iago consegue que um pretendente rejeitado de Desdêmona avise o pai da moça, um senador veneziano de nome Brabâncio, que esta fugira de casa para viver com o mouro. Na primeira cena já se expõe a vilania improvisada de Iago que, exímio perscrutador de almas, observa e assim, inverte, envenena, articula o seu pensamento e o dos outros à sua volta. Sua artilharia mira o general Otelo, por razões que muitos críticos defendem não estarem claras, inclusive para o próprio alferes; mas Iago ataca Otelo através de uma crescente argumentação contra a sua mulher, Desdêmona. E começa do início, isto é, desmoralizando Desdêmona perante o pai.
Ao perceber que Desdêmona saíra de casa em nome de "violência e desafio" próprios, sem quaisquer influências externas, Brabâncio avisa Otelo: "enganará a ti, se enganou a mim". É muito interessante perceber que, nesta peça de Shakespeare, desde o início, toda e qualquer visão do feminino é impetrada por um personagem masculino. O poder pátrio é recorrente na trama, e hierarquicamente apresentado: o rei (representado na figura do Duque), o pai, o marido. Não há uma rainha, ou uma mãe, apenas a esposa que, por força da moral cristã, deve se submeter ao parceiro. A ausência total de uma referência materna social (a mãe) e/ou política (a rainha) é mais um indício do processo de des-influência da feminilidade no imaginário destes personagens. A representação feminina é enfraquecida, e continuamente mal-interpretada. Não coincidentemente, toda essa carga é derramada em Desdêmona, que em nossa opinião, funciona como um alter-ego do poder feminino na trama.
A atitude de Desdêmona, de enfrentar o pai e o rei em favor de um marido de sua escolha, denota uma importante faceta da personalidade da heróina - a qual, ironicamente, se virará contra ela. Desdêmona é leal à Otelo, à sua paixão. É honesta demais e, neste sentido, tão idealista quanto o marido. Crédula e completamente ingênua, sua inocência é a sua ruína. Sua autenticidade é incompatível com a competitividade, com a hostilidade do mundo dos homens. Desdêmona esvazia o pragmatismo masculino, e chega a desafiá-lo. Primeiro, enfrentando o pai para ficar com o marido; e depois, na cena que também é o climax da trama, quando enfrenta a ira de Otelo com um amor incondicional, se deixando matar pelo marido sem ceder à sua desconfiança, sem admitir absolutamente nada. O assassinato de Desdêmona, portanto, não acontece sem uma aura de humilhação, de vergonha para o poder masculino, porque Desdêmona mantém a sua verdade, e esta se torna, mais tarde, a verdade de todos os personagens.
Através do discurso alucinógeno de Iago, a identidade e a personalidade de Desdêmona se transformam radicalmente. Aos olhos de Otelo, ela passa de apaixonada a lasciva; de determinada a voluntariosa; de "doce guerreira" a "pássaro selvagem". Porém, Desdêmona mantém sua fé no casamento e no amor pelo marido. Sua retidão e idealismo se voltam contra ela, porque ela é incapaz de se adaptar à mentalidade ardilosa, preconceituosa e nada sutil que impera no "mundo de homens" retratado na peça. Shakespeare faz questão de realçar com cores berrantes o pensamento misógino por trás da aparente galhofa, dos risos, das conversas despretensiosas que os personagens masculinos travam sobre suas mulheres. Duas cenas ilustram bem essa ambiguidade: a cena em que Iago tenta fazer poesias diante de sua esposa Emília e de Desdêmona, mas as "imagens" em seus "versos" são sempre ofensivas à conduta feminina; ou quando Iago inflama o tenente Cássio a falar sobre suas estripulias sexuais com a prostituta Bianca, de forma que Otelo, que ouve a conversa, pense que o oficial está falando sobre Desdêmona - e assim, convencer o general de que a esposa o trai. São cenas fáceis de se encontrar em comédias, mas com uma tensão latente, provocando a sensação que de alguma maneira o riso está fora de lugar.
O elemento que Shakespeare usa para provocar esse "twist" na estrutura cômica de Otelo é justamente o extremismo nas visões de amor que permeia o relacionamento dos personagens. Se considerarmos o casal protagonista, por exemplo, vemos que a fantasia de amor de Otelo, explicitada na cena do reencontro dos amantes em Chipre (Ato 2. Sc 2), é completamente diferente da de Desdêmona: enquanto Otelo procura no amor e no casamento o apaziguamento de corpo e espírito, Desdêmona procura a paixão cada vez mais crescente. O furor com que Desdêmona absorve tudo o que diz respeito ao marido lisongeia Otelo, ao mesmo tempo em que o assusta. Essa incompatibilidade de expectativas dentro do relacionamento amoroso pode ser identificada, em maior ou menor grau, nos outros casais da trama: Iago não demonstra qualquer afeto pela esposa Emilia, enquanto esta se frustra por não receber nem cumplicidade nem atenção do marido; Cassio vê a prostituta Bianca como diversão, enquanto ela espera que ele assuma o relacionamento. No casal principal, porém, a incompatibilidade se faz num crescendo: primeiro um leve desconforto, "uma mosquinha" da qual o esperto Iago se aproveita para tecer sua enorme teia contra Otelo. Já sob a influência de Iago, o desconforto entre Otelo e Desdêmona evolui para uma tensão cada vez mais forte, até o violento rompimento de limites, com Otelo matando a mulher.
A asfixia de Desdêmona é o ato simbólico que indica a substituição absoluta do poder feminino pelo masculino dentro da peça. E Desdêmona é a personagem na qual este ato simbólico deve ser impetrado - não apenas por ser a principal personagem feminina, mas também por ser a principal imagem do poder feminino na trama. Tolerância, autenticidade, determinação - e ao mesmo tempo, doçura, inocência e idealismo trágicos. Greenblatt (1984) afirma que Desdêmona está longe de corresponder ao padrão de submissão engendrado pelo imaginário masculino para uma mulher. De fato, a "submissão" de Desdêmona a Otelo, o seu "senso de dividido dever" entre o marido e o pai Brabâncio, nada disso se concretiza sem um critério fundamental nesta personagem - o desejo. Todo o seu sentimento, toda a sua "violência e desafio" (Ato 1. Sc 2) passam necessáriamente pelo poderoso exame de consciência da heroina - e por ter uma consciência independente da consciência e desejo dos homens à sua volta, é que Desdêmona está fadada a desaparecer.
Autores consultados:
GREENBLATT, Stephen. “The Improvisation of Power”. In: ________. Renaissance self-fashioning; From More to Shakespeare. London: The University of Chicago Press, 1984. pp. 222-257.
NEELY, Carol T. “Women and Men in Othello”. In: LENZ, Carolyn T.S, GAYLE Greene & NEELY, Carol T. The Woman’s part: Feminist criticism of Shakespeare. Urbana: University of Illinois Press, 1983. pp. 211 – 239.
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