É importante lembrar sempre que colhemos nossas impressões sobre Capitu a partir do olhar amargurado do narrador-protagonista, o marido (pseudo)-traído. A construção da personalidade de Capitu é fruto de um testemunho que oscila entre o encantamento e a mágoa, e de um olhar que reveste impressões pueris, do convívio de infância dos personagens, com a roupagem de uma alma triste, torturada por uma certeza que, para nós, sempre será uma dúvida. Além disso, o olhar que Dom Casmurro lança sobre sua relação com Capitu se forma também a partir de um cruzamento dos olhares de outros personagens sobre a protagonista. Desde quando era apenas Bentinho, o menino tímido dominado pelas vontades da mãe viúva, Capitu era a vizinha sobre a qual pousaram inúmeras descrições - e é José Dias, o falastrão agregado da casa de Bentinho, quem define para sempre o olhar de Capitu: "olhos de cigana oblíqua e dissimulada". Destaque para "obliqua", isto é, sinuosa, ardilosa; e "dissimulada", capaz de fingir pronta e eficientemente. Segundo José Dias, olhos que o Diabo lhe deu. Será?
O primeiro pecado de Capitu, aos olhos da família de Bentinho, é desviá-lo do caminho da fé. Nos primeiros capítulos de Dom Casmurro, o jovem Bentinho sofre por ter que escolher entre a promessa feita pela mãe de torná-lo padre, e o sentimento pela bela vizinha. Capitu é a primeira experiencia amorosa na vida de Bentinho - o primeiro beijo, o primeiro toque, a descoberta da atração física, tudo isso Bentinho sente primeiro por Capitu. Mas, o que o amargurado D. Casmurro dá a entender é que é Capitu quem toma sempre a iniciativa:
Como vês, Capitu, aos quatorze anos, tinha já idéias atrevidas, muito menos que outras que lhe vieram depois; mas eram só atrevidas em si, na prática faziam-se hábeis, sinuosas, surdas, e alcançavam o fim proposto, não de salto, mas aos saltinhos. [...] Tal era a feição particular do caráter da minha amiga; pelo que, não admira que, combatendo os meus projetos de resistência franca, fosse antes pelos meios brandos, pela ação do empenho, da palavra, da persuasão lenta e diuturna, e examinasse antes as pessoas com quem podíamos contar. (cap XVIII)
Assim é, por toda a narrativa: Capitu é voluntariosa, inteligente, viva, e isso fascina Bentinho. Não são apenas um casal, são um constraste perfeito de personalidades, são uma simetria. Capitu é um paradigma do olhar masculino sobre a alma feminina: e por isso mesmo, a descrição de Bentinho é sempre posta em cheque. Mas era preciso que houvesse também um duplo masculino, um personagem que representasse tudo que Bentinho não era, mas gostaria de ser. E esse é Escobar, o colega de seminário, o melhor amigo, o traidor em potencial - sedutor, belo, envolvente. A inveja latente de Bentinho por Escobar também influencia o seu olhar sobre Capitu: Bentinho confere a Escobar um poder que não sabemos se ele possui de fato - Escobar é o flautista mágico, que atrai mulheres para o desastre. E Capitu, a vítima perfeita, porque sua vivacidade extrapola, na visão de Bentinho, os padrões de comportamento feminino - e por conta disso, não pode ser isenta de culpa.
Claro que o modelo de comportamento feminino de Bentinho será sempre a mãe: D. Glória, uma santa, inatingivel. Mais um duplo na trama, desta vez para Capitu. Uma viuva que mesmo jovem, fechou-se para o amor terreno, dedicando-se exclusivamente ao filho, educando nos ditames da boa conduta. Ao sonhá-lo padre, quase dá a ele o status que ele confere a ela, o da santidade. Mas Bentinho tem um fraco: a bela Capitolina. De algum modo, portanto, Bentinho sente que traiu a mãe, casando com Capitu. Considerar a "traição" da esposa funciona também como uma penitência, por ter abandonado o seio materno, por ter sucumbido a tentação da carne.
Para coroar as suspeitas sobre Capitu, temos o fruto do pecado: Ezequiel, o filho de Capitu que D. Casmurro jura ser a cópia de Escobar - nos trejeitos, na atitude, na postura. Mais tarde, quando o jovem Ezequiel visita o pai Bento, D Casmurro afirma que se parecem também na aparência. Como no Otelo de Shakespeare, a importancia da evidência, da prova cabal que, na verdade, não se sabe se existe. Ezequiel não é descrito por outros personagens, só por Bento. Temos apenas a palavra, ou o olhar dele atestando a semelhança entre Ezequiel e Escobar.
Capitu, portanto, representa todas as facetas que a alma da mulher pode inspirar na imaginação do homem: sedução, dissimulação, uma beleza maldita, um infortúnio. A mulher é o oposto da mãe, é amiga do sexo, do pecado. A morte de Capitu, porém, não é o fim do delírio. Na verdade, a morte, em D Casmurro, não é o fim de nada. O fim é o cotidiano, a rotina de um dia após o outro, na vida de um homem consumido pela tristeza. Capitu, Escobar e Ezequiel mortos, nada resta a Bento. Nada se pode provar. Nada mais se pode ver. Só há um último delírio, em que D Casmurro imagina Capitu e Escobar juntos, traindo-o na eternidade. O resto, como diria Hamlet, é silêncio. E a voz dos subúrbios.
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