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PECADORES CONFESSOS...

domingo, 13 de março de 2011

"UNSEX ME HERE!!!": As travessuras do bom menino e da menina má de Mario Vargas Llosa.

As Travessuras da Menina Má, de Mario Vargas Llosa, é uma história quase triste, sobre um amor que perambula por décadas de fatos, encontros, desencontros, e desilusões quase desnecessárias. Tudo narrado por um homem que "é, até deixar de ser". Um tradutor. Um Macbeth, alguém que está sempre vestido na roupa de outro. Um quase peruano, quase parisiense, emocionalmente obstinado, mas quase sem outras ambições. Este protagonista-narrador, de nome Ricardo, tem um coração de leão dedicado por quase toda uma vida a uma única mulher - que por sua vez, esteve sempre no limite entre ter quase tudo e quase nada. 

A menina má é um pseudônimo, o alter-ego de uma mulher que se recusa a ter uma identidade - ou pelo menos, se recusa a ter uma identidade que ela não tenha conquistado, a seu modo.  Narrado em primeira pessoa pelo "bom menino" Ricardo, eterno amante-brinquedo da menina má, o romance de Llosa descreve uma mulher profundamente cética, cínica, muito esperta mas não necessariamente inteligente, que esconde uma bagagem emocional conflitante, sofrida, e um passado que ninguém sabe muito bem qual é. Uma mulher nem bonita, nem feia, mas que constrói uma aura de fascinação em volta de si, através de uma prolífera coleção de mini-ficções que ajudam a (des)entender o fato cru - a menina má é um animal só, triste, sem esperança nenhuma na humanidade, que escolhe usar o mundo para a sua máxima sobrevivência, e para a conquista de seu único objetivo - ser alguém totalmente diferente de tudo o que já foi antes. De certa forma, a menina má também "é, até deixar de ser", exatamente como o "bom menino" tradutor. 

A expressão "bom menino", usada deliberadamente pela protagonista do romance, denota uma certa apatia do narrador em relação ao mundo e suas infinitas possibilidades, em contraste ao movimento irrequieto da menina má. Sempre inconformada, sempre seguindo, a menina má é o paradigma de uma individualidade que nunca se define, nem parece encontrar o seu lugar. Enquanto a maior ambição de Ricardo é se misturar a massa indefinida de individuos que se julgam parte de um grupo, a menina má procura o destaque pela inconsequencia, pelo desejo exacerbado, pelo perigo. 

Ricardo teve oportunidade de ser guerrilheiro, hippie, poeta, profissional renomado - mas se contentava em apenas morar em Paris. Até o seu oficio pode ser desinvidualizante. Ricardo é peruano de nascimento, mas sua função é traduzir textos não apenas para o espanhol, mas para qualquer idioma que consiga dominar. Ricardo é na vida como é na sua profissão: um intérprete, alguém que passa todo seu tempo emprestado em outras identidades, antes de voltar para algo que ele não se apressa em definir como ele mesmo. Ricardo simplesmente não tem essa preocupação.

A menina má, ao contrário, é um espírito livre, destacado do mundo, e gosta disso. Gosta de enfrentar,  não se conforma em nenhum momento. Transita de guerrilheira peruana financiada à esposa em vários casamentos - todos desastrosos pois, como dissemos, a menina má possui uma ambição desmedida, e por conta disso, um parasitismo patológico. Ela enxerga uma oportunidade e a agarra, adaptando-se até certo ponto e a uma distancia segura de qualquer envolvimento. Quando acha que já teve o suficiente, vai embora, sempre procurando novos campos férteis para explorar. Mas nunca tira proveito definitivo de nada. Quando precisa de um porto entre suas inúmeras "travessuras", volta sempre ao ponto de partida: Ricardo, o peruanito irremediavelmente apaixonado por ela. Mas nunca fica aportada muito tempo.

O texto de Llosa é envolvente, enigmático no sentido de que nunca sabemos exatamente a extensão da verdade - ou da mentira - nas narrativas de seus protagonistas. Sempre que a menina má conta uma história, a dúvida razoável se instala: será verdade? ou por outra, até que ponto é verdade? O velho jogo de contar um conto aumentando um ponto é bastante explorado no romance. A narrativa de Ricardo sustenta a cronologia dos acontecimentos, e é cercada de fatos periféricos, ambientes, mas ainda assim não garante a verdade absoluta, por um motivo simples: é uma narrativa intimista, cheia de frustrações, paixões, ressentimentos. A menina má é o produto de um ponto de vista inevitavelmente parcial. Não podemos saber até que ponto a representação desse amor bandido, quase doentio do protagonista influenciou a caracterização dessa mulher objeto do seu desejo. A menina má não prima pela honestidade, nem é seu objetivo estabelecer valores. Mas teria enganado Ricardo? Até que ponto esse amor determina as escolhas de ambos os lados? O eterno bem-me-quer, mal-me-quer parece uma constante a se considerar neste romance.

A constante troca de identidades da protagonista também auxilia na representação de diversas formas de "amor" - entre aspas, se quisermos ser honestos em relação à capacidade que a menina má tem de amar. Para ela, o amor parece ter um sentido totalmente particular, sendo quase sempre um meio para um fim, algo que não é capaz de sentir mas que parece detectar nos outros em relação à sua pessoa - e que usa indiscriminadamente a seu favor. A menina má parece criar durante toda a sua trajetória apenas duas relações    "amorosas": com Ricardo e com um contrabandista pervertido de nome Fukuda (não deixa de ser engraçado o apelo fálico desse nome). Novamente colocando o amor entre aspas, sugiro que  o que se estabelece entre a menina má e esses dois homens são relações de profunda dependência emocional, como resultado de uma total imaturidade por parte da protagonista neste departamento. Ela parece querer se destituir de qualquer potencialidade emocional - uma perfeita Lady Macbeth, dessexuada mas carente. O sexo para a menina má é doloroso, sacrificante como qualquer contato íntimo. Com Ricardo é uma constante batalha de egos - ela não o deixa penetrar seu sexo tanto quanto não o deixa dominar seus sentimentos. Com Fukuda é completamente o oposto: ela se submete a um jogo de perversões, masoquismos, apenas por não conseguir se livrar de uma personalidade mais forte que a sua.  De qualquer modo, é sugestivo que a sexualidade da protagonista seja, ao mesmo tempo, sua maior arma e sua principal fraqueza. 

E qual seria o pecado da menina má? O seu cinismo, a sua pretensa sociopatia? Não seria a sua condenação um produto da boa e velha misoginia, já que se trata de uma mulher que pega emprestado vários atributos tipicamente masculinos? Não seria a menina má e o bom menino a versão de Llosa para o shakeapeariano casal Macbeth? Esta pergunta merece um artigo só para respondê-la.

Ao invés disso, proponho aqui uma atmosfera anti-heróica na construção da protagonista feminina. É possível enxergar a menina má como uma mulher numa cruzada pessoal, levantando sozinha a bandeira da individualidade, da independência. Uma mulher machucada na própria sexualidade - também no aspecto físico, já que sente dores ao ser penetrada - que tenta se despir de qualquer moralismo ou estereótipo carregado pelo seu sexo, preferindo brincar com esses valores para alcançar seus objetivos. Neste sentido, o termo infantil "travessura", usado por Llosa no título do romance, parece descrever perfeitamente a atitude da protagonista, denunciando ao mesmo tempo: a maneira jocosa com que ela escolhe lidar com o mundo que não parece favorecê-la; e uma certa imaturidade nas ilusões que ela cria de si mesma enquanto aparenta "pertencer" a este mesmo mundo. Lendo com cuidado, percebemos que não fosse o tom ferino inerente em sua voz, as histórias da menina má narram as usuais agruras e decepções pelas quais uma mulher oprimida pelo chauvinismo pode passar. Tudo tão reconhecível que pode até ser verdade. É como se constrói a dúvida razoável que permeia a narrativa.

O problema do herói é sempre o mesmo - em dado momento, ele se perde dentro das próprias virtudes ou, ironicamente, por que as valoriza demais. E a menina má, solitária em seu deboche das instituições sociais - nunca aprendendo de fato a falar como os outros, nunca exatamente respeitando seus códigos, sempre apenas aparentando, criando uma versão mal-acabada do que se espera dela - acaba seguindo o mesmo caminho. Sua mentira continuada acaba por confundi-la - conforme atestam os psiquiatras que a analisam após sua relação traumática com Fukuda. O bandido asiático é o seu duplo, uma visão do que ela seria se levasse a sua maldade latente a sério. E, é claro, tem de ser um duplo masculino. Uma mulher não chegaria tão longe. Certo?

Ultrapassando o passo da loucura, está o derradeiro fim da menina má - depois de casar com a menina má para que ela consiga regularizar seus documentos, somos surpreendidos na última parte do romance, ao percebermos que o Ricardo sessentão está morando em Madri com uma jovem que não é a sua "esposa". Naquela altura a desmitificação da menina má já acontecera - Ricardo descobre que ela se chama Otília, peruana de nascimento mas de origem muito pobre, criada no beira-mar, no lixo e na promiscuidade. Um lugar ao qual estranhamente ela nunca pertencera, de acordo com o pai Arquimedes, que Ricardo conhece acidentalmente numa viagem de visita ao seu país natal. 

Descobrimos que a menina má abandonara Ricardo novamente para continuar sua eterna busca. Mas, ao voltar para ele uma última vez, "Otilita" já está gravemente doente. Diagnosticada com um câncer na vagina (onde mais?), deformada em sua feminilidade por inúmeras cirurgias, já não desperta desejo nem mesmo no apaixonado Ricardo. Com pouco tempo de vida, a menina má comete o seu único ato altruísta, deixando para o bom menino o único bem que conseguira acumular com suas travessuras - uma confortável casa que ganhara de seu último amante. No final, Ricardo acompanha o lento definhamento de Otília, enquanto ela lhe diz, com toda confiança, que lhe dera material suficiente para um livro. Ironicamente o fim é a memória que impulsiona o ínicio, se entendermos toda a narrativa como a última vontade que Ricardo faz à menina má, contando sua nebulosa e intricada história.


Mario Vargas Llosa

O desaparecimento da menina má coroa a sua degradação enquanto individuo rebelde, lascivo, pretensamente dono de si. Ela não é. O mundo a engole, como a todos os (anti-)heróis. Será que em algum momento ela se redime? Será que seu pecado carece mesmo de redenção? Que tantos outros personagens enxergamos nela, quantas referencias transgressoras identificamos? Será que ela era de fato, má? Ou apenas uma menina? Esta é a grande dualidade do livro que, como todo bom escritor, Manuel Vargas Llosa deixa propositalmente sem resposta.








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2 comentários:

Anônimo disse...

Minha flor tem um Meme literário p vc no meu blog
passa lá

Bjo

Anônimo disse...

Olá Claudinha,

Ótimo texto de indicação! Fiquei com água na boca para ler o livro, já entrou para minha listinha de leitura!

Grande beijo para ti!

http://omundoparachamardemeu.blogspot.com/

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