Madame Bovary, de Gustave Flaubert, está listado entre os 100 melhores livros de todos os tempos. É certamente um livro fundamental, especialmente no tocante à (des)construção da individualidade feminina. Emma Bovary é uma protagonista intensa emocional e psicologicamente – e por isso mesmo, distanciada de seu meio. Sua defesa de si mesma é um caso perdido diante de uma sociedade chauvinista, escravizante, generalizadora. É a tragédia do feminino em potencial – um exemplo de degradação do indivíduo em relaçao ao ambiente.
Neste post vamos falar de uma personagem criada a partir do modelo Bovary – mas que faz o caminho inverso ao tragicismo de Emma. Estamos falando de Constance Reid, ou simplesmente Connie, ou, como passou a se chamar depois de casada, Lady Chatterley.
O amante de Lady Chatterley (1928), de D.H. Lawrence, foi proibido em vários países na época de seu lançamento por ser considerado provocativo, imoral. Lawrence descreve em detalhes as relações sexuais entre Connie e seu amante, Oliver Mellors. Nomeia orgãos genitais, explicita preliminares sexuais, e o ato em si. O romance não foi liberado para publicação na Inglaterra antes de 1960. De fato é um livro “aberto”, honesto quanto à caracterização do corpo como instrumento de expressão do indivíduo. O sexo, para Lawrence e no contexto do romance, representa o reconhecimento do indivíduo enquanto parte do mundo sensível, um ser cuja presença faz diferença no mundo.
Só esta premissa nos parece um oposto direto à contextualização da Emma de Flaubert. Emma, como Connie, também usa o corpo como representação da sua individualidade, e a sua frustração sexual também é a sua frustração enquanto individuo. Mme. Bovary se recusa a ser uma peça na engrenagem de uma sociedade que acharca o seu desejo, e o seu arbítrio. Recusa-se a submeter-se ao papel imposto a ela – despreza o marido, ignora a filha. Procura construir uma imagem que a destaque, a diferencie das cores locais – mas acaba consumida pelos proprios vícios. Lady Chatterley, apesar de fazer o mesmo exercício de afirmação da individualidade, tem uma visão de mundo menos idealista do que Emma. Constance tem uma formação profundamente intelectual, vem de uma familia burguesa ascendente, tem total conhecimento das regras do jogo social; não a aprendeu nos livros do colégio interno, como Emma. Tendo também a insatisfação sexual como ponto de partida, Constance não atira a esmo; não se joga entre sonhos e sensações frívolas, buscando a completude que imaginara para si. Há um processo de maturação na personalidade de Constance que não se enxerga em Emma. E é neste ponto que suas histórias deixam de convergir.
A escolha do parceiro sexual é um exemplo na diferença de perspectiva de Emma e Constance. Emma tem pelo menos três amantes diferentes no decorrer da narrativa de Flaubert. As descrições das aventuras sexuais de Emma são envoltas em atmosferas de sonho, a sua intensidade está na idéia do sexo, e não no sexo propriamente dito. Já Lady Chatterley tem apenas um amante, Olliver, empregado da casa de seu marido. A relação dos dois é narrada literalmente por Lawrence, conferindo ao romance um realismo “perigoso” – porque aproxima demais leitura e leitor. Constance e Olliver desenvolvem uma historia de afinidade, companheirismo, temperado com um desejo intenso e uma procura pelo equilíbrio entre a satisfação sexual e a satisfação pessoal. Tal desenvolvimento não se encontra nos romances de Emma Bovary. Emma usa o sexo extra-conjugal como valvula de escape, e tenta desesperadamente igualar satistação sexual com a sua fantasia. O que invariavelmente resulta em frustração.
Ambas lidam com a impotência – literal ou figurativa – de seus maridos. Charles Bovary é um homem burocrático em todos os sentidos. O que faz com que Emma se desiluda do casamento a partir da lua de mel. Já o marido de Constance é um aristocrata que se fere na I Guerra Mundial – paralisado da cintura para baixo e também impotente. O descasamento sexual tanto de Emma quanto de Connie é o gatilho pela busca por novas experiências. Mas Emma jamais amadurece, sempre buscando o romantismo dos livros que lera na infancia, sempre enxergando um príncipe encantado em seus amantes intelectuais e/ou de alta classe. Connie e Olliver se aproximam pelas decepções em seus relacionamentos, e confiam um no outro para se complementarem, se equilibrarem. Oliver é um homem de boa educação mas de origem proletária, o que não é um impedimento para Connie, pois demonstra a disposição de Lawrence de aproximar a protagonista de uma realidade palpável, miscigenando socialmente os personagens. Em consequencia dessa aproximação, o caso entre Connie e Olliver cresce e floresce,enquanto os relacionamentos de Emma Bovary jamais duram muito.
Como resultado, a individualidade intensa e conflituosa de Emma definha rapidamente, e desintrega-se no meio que a cerca. Sem conseguir se auto-afirmar, Emma observa o proprio processo degenerativo quando seu ultimo pedido antes de morrer é um espelho. O seu suicidio significa o ataque final contra um corpo que já não se reconhece, e que está fadado ao desaparecimento. Já Connie e Olliver tem um final feliz, livrando-se de seus casamentos e se unido oficialmente. Lady Chatterley regenera sua individualidade e se reafirma enquanto ser que deseja, usando o jogo social a seu favor.
O contraste entre a degeneração e a regeneração do individuo – que está diretamente relacionada entre a França aristocrática do sec. XIX (Flaubert) e a Inglaterra pré-industrial do inicio do sec.XX (Lawrence) – acaba por desvincular os pecados de Emma e Constance. O adulterio de Emma é uma forma de escapar; o adulterio de Connie é uma forma de enfrentar. Em ambos os casos, a tríade corpo/mente/individuo é usado como instrumento embora, no final, todo o esforço dessas mulheres desemcambe ou para o drama resolvido ou para a imensuravel tragédia.
4 comentários:
Não posso me demorar no comentário porque vou correndo à livraria comprar O amante de Lady Chatterley!!!!!
Adorei!!!
Bjs
Já li amabos os lirvros Claudinha.
Adorei sua análise, ambos são libidinosos e comedidos a sua maneira...o melhor da literatura internacional. Beijos
Olhos brilhando.
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Adoro suas análises, assim como adoro o livro.
Parabéns.
Beijos.
Eu ja havia comentado sobre seu artigo, mas não veio, problema de internet lenta.Mas adorei a abordagem sobre esse livro, ainda não li Flaubert, mas assim que o $$ pintar, quero ler esse romance ja embasado da sua perspectiva. Estou sempre por aqui, abraços
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