O livro |
A jovem Antonieta, ou simplesmente Tieta, era o que se chama no interior de cabritinha. Pastora de cabras, a ambiguidade de seu apelido também alude a uma menina espevitada, brejeira, que gostava de provocar principalmente o sexo oposto. Nos idos anos do fictício Mangue Seco, Tieta corria as dunas, incorporando a onomatopéia dos cabritos, encorajando e desafiando os homens. Até seu pai olhava-a diferente. Tieta era, se assim pudermos comparar, uma Lolita em estado bruto. Sem cultura, em roupas de chita, e com modos rústicos. Assemelhava-se em grande parte aos animais que tangia. Mas seu apelo erótico e suas escapadelas incomodam muita gente. Até que são delatados pela irmã mais velha, a invejosa Perpétua, fazendo com que seu pai a espanque e expulse de casa e da cidade de Santana do Agreste. No interior, o pátrio poder tem mãos de ferro, e a família é seu território, sobretudo as mulheres.
Mas na história de Tieta do Agreste (1977), Jorge Amado não se resume à juventude da protagonista. O passado é apenas o ponto de partida para o enredo clássico do filho pródigo - ou neste caso, da filha escurraçada que retorna à cidade natal, bem-sucedida e rica, e disposta a influenciar o cotidiano do lugar. Numa narrativa anacrônica e baseada em pontos de vista, Amado nos proporciona acompanhar o amadurecimento do comportamento sexual de Tieta, e também o seu refinamento. E no meio do caminho, constroi pelo viés da capacidade erótica uma série de duplos para a protagonista, de ambos os sexos. Vamos nos ater, é claro, aos duplos femininos que, ao nosso ver, são quatro: Perpetua, a irmã recalcada; Tonha, a madrastra reprimida; Leonora, a filha postiça; e Imaculada, a cabritinha virgem.
Todas estas quatro personas se definem, de uma forma ou de outra, em comparação à forte personalidade de Tieta do Agreste. Perpétua, a antagonista, é aquela cujo comportamento sexual é dramaticamente oposto ao da irmã. Não por opção, mas por falta de oportunidade, ou simplesmente por interesse. Perpétua casou-se uma única vez, com um militar; e enviuvou cedo. Desde então, mantém-se casta, infurnada na igreja e rodeada de beatas mas, entre quatro paredes, troca as orações por uma enorme caixa de presente, onde contempla diariamente o embalsamado membro do seu marido morto. A obsessão de Perpétua é a ausencia do sexo, o voyeurismo, e até um certo masoquismo, impondo uma poderosa nulidade ao proprio corpo. Mas sua mente...sonha, deseja, e o seu símbolo fálico - que neste caso é, literalmente, o falo masculino - está devidamente materializado. Seu sentimento pela irmã liberada, desejada e realizada sexualmente não poderia ser outro senão um ódio deliberado.
Tonha, ao contrário, é a mulher cujo apetite erótico permanece latente, contido pelo dever para com um casamento falido, infeliz. Tonha regula em idade com Tieta, casou-se jovem com o pai da protagonista, e funcionou como um espécie de substituta moralmente aceitável no desejo do marido pela propria filha. A identificação de Tonha com Tieta também se dá na profunda curiosidade sexual, no desejo de experimentar e na capacidade de atrair. Mas Tonha não se vale desses predicados. Presa à um dever de fidelidade conjugal, ela se reprime no comportamento e na aparência. É a típica Amélia, mulher de verdade que não tem a menor vaidade, se contenta com pouco, e trabalha até a exaustão para manter a casa e o marido.
Tieta, novela da Rede Globo (1989) |
Leonora e Imaculada já fazem parte da vida da Tieta adulta, quando esta retorna à cidade rica e disposta a mudar a estrutura do lugar. Leonora é a filha emprestada, com um passado violento - foi currada na adolescencia. Neste caso, a juventude e a brejeirice se chocam com o sexo não-consensual. Enquanto Tieta se esgueirava pela reserva de Mangue Seco para se aventurar com os homens, Leonora foi pega por eles à força. Um aspecto sombrio da iniciação sexual que de alguma maneira determina o comportamento sexual da vítima. Leonora é romântica, frágil emocionalmente. Chama sempre Tieta por Maezinha, parece alguem que parou na adolescencia, quando aconteceu o estupro. Volta para Santana do Agreste junto com Tieta e se envolve com um dos figurões da cidade, o político Ascânio, que a tem como uma santa. Mas quando a verdade sobre a fortuna de Tieta vem à tona, as opiniões sobre Leonora mudam completamente.
A historia que Tieta conta a cidade é a de que ela teria casado com um comendador e herdado todo o dinheiro após sua morte. Mas descobre-se que Tieta é, na verdade, Mme. Antoinette, uma das cafetinas mais influentes de São Paulo, com a maioria dos políticos em sua agenda, e que Leonora é uma das suas escorts. Seu poder e seu dinheiro vem da profissão feminina mais explorada no imaginário masculino - Tieta é a transgressora clássica, a prostituta de berço, nasceu para o sexo e não se arrepende. Foi trabalhar na única coisa que ela sabia fazer. E fazia bem. Ganhou prestígio, influência e muito dinheiro. Um dinheiro renascido do pecado que a escorraçou da cidade. Um pecado cujo lucro atiça a ganância e a hipocrisia locais.
Por último, Maria Imaculada, a nova cabritinha. É aquele que incorpora o espírito da jovem Tieta. A aluna que por um momento supera o mestre. Imaculada seduz Ricardo, seminarista e filho de Perpétua, enquanto este está tendo um caso com a tia Tieta. Cardo, como é chamado, é o menino dos olhos da mãe, o filho que ela prometera entregar a Deus. Por outro lado, tem uma virilidade velada, que se expande fora das vistas do grande público, que a volúpia de Tieta acaba por lapidar - para Imaculada aproveitar. Imaculada é responsável pelo primeiro par de chifres colocado na cabeça de Tieta. É como ser traída por si mesma, provando do proprio veneno.
Tieta do Agreste, filme de Cacá Diegues (1996) |
Mas a vingança, como diria Tácito, é um prazer. E o final de Imaculada é o mesmo da jovem Tieta: saindo da cidade para ser prostituta na grande São Paulo. Empregada de ninguém menos que da poderosa Mme. Antoinette.
Mme. Antoinette. O alter-ego de Tieta. A personificação do seu pecado, que também é o seu talento. Jorge Amado nos conta, de maneira leve, como a hipocrisia chauvinista enxerga a sexualidade feminina - tanto num ambiente retrógrado e primitivo como Santana do Agreste, quanto nos centros urbanos. E nos mostra também como um mulher usa o chauvinismo a seu favor, de certa forma troçando as vaidades masculina e feminina, e vencendo ao fazer exatamente aquilo que o homem mais teme em imaginar: a liberação do sexo.