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PECADORES CONFESSOS...

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

MULHERES QUE PECAM N. 5 - LUCIOLA

 
Uma estratégia narrativa muito presente em Lucíola (1862), como em outras obras de José de Alencar, é a tendência a convergir palavra e imagem, é fazer o livro passar na fantasia do leitor como um filme, ou uma seqüência de enormes paisagens. Não é uma estratégia gratuita. O uso contínuo de cores e formas na descrição dos eventos em suas tramas parece ter o intuito de antecipar uma ligação inconsciente com o imaginário do leitor, facilitando a criação de um reflexo, uma relação verossímil com a sua própria realidade. Os ‘quadros’ pintados por Alencar revelam uma palavra ao mesmo tempo pitoresca e dúbia, armazenando nos personagens diversos modos de agir e/ou conduzir. Cabe à Lúcia, expressão máxima de ambigüidade poética do romance, a missão de representar o claro e o escuro, a máscara do rebaixamento social escondendo a generosidade, o sentimento, a elevação de espírito que personagens coadjuvantes não parecem ser capazes de exprimir. Cabe à Lúcia de Alencar o privilégio de prostituir a si mesma, e construir em cima de referencias de um outro mundo o seu próprio, para fazer valer a sua vontade, perfazendo uma imagem tão inesquecível que terá o poder de suscitar as mais belas palavras e o mais sublime dos sentimentos.


A história, ambientada no Rio de Janeiro de 1861, se desenha a partir das lembranças de Paulo, personagem-narrador-amante, sobre sua história de amor com uma “mulher bonita” de nome Lúcia, ocorrida seis anos antes. A memória neste caso torna-se o recurso fundamental do artista, ou mesmo do contador de histórias, ao proporcionar a construção de um panorama de sentimentos, verdades e observações. Nesta junção de imagens e palavras acompanha-se o olhar crítico, sincero, muitas vezes furtivo e acima de tudo, colorido do personagem masculino central. Paulo vê a cidade, vê a paisagem, vê a mulher. A mulher, aqui, se resume à figura daquela cuja essência o intriga desde o início.



O olhar de Paulo, a princípio, é de encantamento, mas apenas porque ele desconhece o modo de vida daquela que, até então, assumia ares de musa, cuja beleza se põe a mercê das impressões do artista. Entretanto, a partir do momento que a atividade profissional de Lúcia é revelada, um outro olhar parece impregnar as suas opiniões. O juízo que Paulo faz de Lúcia passa não mais pela concepção do Belo, mas por um simples aspecto de beleza física. Afinal, a uma cortesã deve-se apenas desejo, talvez certo tempo, mas não admiração. O código de conduta social da época parece influir no comportamento do personagem-narrador, que tenta cercar seus quadros com uma moldura típica, uma visão pré-concebida de Lúcia, ou a visão que lhe cabe por sua condição, por assim dizer, inferior. Em outras palavras, Lúcia é um aleijo social, uma pata de gazela, um mal necessário. Paulo procura ver em Lúcia a sombra, o escuro social que ela devia representar.


Entretanto, Lucia permanece um enigma para o narrador. Uma cortesã não pode pressupor o belo e o grotesco ao mesmo tempo. Não pode ser poesia, e ao mesmo tempo significar nada. Ao contrário, em qualquer sistema social a mulher que prostitui o corpo representaria o auge da degradação, uma falha de caráter. Na sociedade brasileira em formação do séc.XIX, porém, a cortesã é também uma peça do tabuleiro, uma presença constante em todo escol que se procura imitar. A imagem que ela tem de si mesma e, sobretudo, sua imagem social depende de uma aquarela repetida, imutável. O narrador é, antes de tudo, um ser sociável e como tal, procura dar a seu universo narrativo uma idéia resolvida muito antes dele próprio, passada de geração em geração.



Mas Lucíola, o pirilampo, persiste. É um “lampiro noturno que brilha de uma luz tão viva no seio da treva e à beira dos charcos” 2. E a luz volta e meia aparece nas perspectivas de Paulo a respeito de Lúcia. A luz de sua beleza expõe simultaneamente a sombra que é sua existência em sociedade. Lucíola é um fenômeno que carrega dentro de si uma espécie de dissociação de personalidades completamente antagônicas. Lucíola brilha, invariavelmente, no escuro. Não há como vê-la sem ao seu reflexo. É interessante notar a seleção de palavras que Alencar atribui à personagem, sempre aludindo a sua beleza como um bálsamo, uma expressão de pureza, como se olhar do artista – neste caso, o olhar provinciano de Paulo – pudesse perscrutar além do invólucro imposto pela sociedade pseudo-ocidental da época. A narração de Paulo constrói uma Lúcia casta, amoral. Sua carne e seu espírito são divindades distintas.



A profanação do belo, na concepção do romance, se dá através do papel social que Lúcia se vê obrigada a desempenhar. Mas o corpo violado pela necessidade não poderia ser de todo perfeito. Alencar produz para Lúcia uma falha no coração. Uma palpitação que a deixa pálida, sem vida, cada vez que ela se rebaixa à sua posição na côrte. Um sofrimento que vem de dentro, como a purgação de um pecado, o de apenas parecer. Esse despedaçamento da carne fica evidente na belíssima passagem em que Lúcia interpreta, para o deleite sarcástico do personagem Sá e seus convidados, as pinturas das bacantes na parede, transformando-as num quadro vivo (p. 39). Na descrição da performance de Lúcia, Alencar se esmera em fundir movimentos bruscos, ousados com a leveza e a susceptibilidade femininas. Verbos como saltar, agitar, retrair, requebrar são naturalmente mesclados com os adjetivos flébil, soluçante, trêmula. A imitação lasciva de Lúcia se mistura com sua caracterização reportando às virgens gregas. Também fica bastante clara a questão da imitação, da referência a um modelo com o qual se pode apenas parecer, mas nunca ser. O comportamento mimético de Lúcia é quase uma extensão da hipocrisia dos convidados, que aplaudem entusiasmadamente a humilhação de um outro. Talvez por isso o aparente “êxtase amoroso” de Lúcia é também um suspiro, um soluço, um corpo estremecido. A poesia de Alencar nos remete a uma dubiedade de sensações que podem ser tanto arrebatamento quanto agonia.



Ao projetar a luz de seu olhar sobre Lúcia, Paulo ressalta de imediato que claros e escuros seriam inevitáveis. O que parece implícito na narrativa de Paulo é que os escuros de Lúcia parecem estreitamente ligados às suas relações em sociedade. O isolamento da cortesã, a sua pretensa mesquinhez, a sua conduta exageradamente concupiscente diante da côrte que a despreza e que ela despreza de volta, tudo é uma cortina de fumaça para a alma reluzente que apenas o narrador é capaz de observar. Na seqüência da atuação de Lúcia na festa do Sá, Paulo é o único que percebe as suas “contrações nervosas”, os seus “soluços de angústia”. É como se Lúcia não estivesse partindo para o gozo, mas para o sacrifício. Tudo permanece duplo, como uma batalha de egos. De um lado, a prostituta que sofre; do outro a sociedade que a oprime. As relações pessoais e sociais se confundem e também se enfrentam. E o narrador se encontra curiosamente no vértice de ambas. Neste contexto, como configurar o início de um caminho, até uma provável redenção dos personagens?



A solução seria, portanto, o romance. Paulo se apaixona por Lúcia. Ou pela musa de suas pinturas de palavras. Ou pela alma dilacerada da bacante. Não pode ser o acaso. Alencar constrói uma mulher fragmentada, sensível, dividida em duas, e um narrador que é também um apaixonado, igualmente fragmentado, mas ainda assim um homem, cuja virilidade precisa ser ambientalmente defendida. Um homem cujo olhar reflete exatamente o contexto em que vive, o esconde-esconde que é a base da nossa moderna brasilidade. Alencar constrói em Lucíola uma protagonista às voltas com os vícios de uma côrte habitualmente hipócrita, tendo que sobreviver a uma casta privilegiada que tenta violar seu espírito com a mesma arma que violaram seu corpo – o subjugo social. É interessante notar que não há nada de gratuito na escolha do nome Lúcia para a prostituta de Alencar. Assim como Lucíola é um pirilampo que brilha no escuro, Lúcia, não coincidentemente, é a palavra em latim para luz. Mas Lúcia existe, ironicamente, quando não é Lúcia. O nome da personagem urbana foi emprestado, como depois saberemos, de uma mulher cuja carne apodrece a sete palmos. A partir daí o nome da luz adquire uma conotação mais sombria. A Lúcia que vive é uma personagem, alguém que considera sua própria carne apodrecida e impura, ainda que servindo de casca para uma alma iluminada nos olhos de poucos, ou apenas de um – Paulo (do latim pouco, pequeno), o narrador apaixonado.



O olhar do amor perfaz a conexão entre sensação e sentimento, encarnados ao extremo na personagem-título. Paulo impressiona-se com Lúcia antes de conhecê-la. Depois que a conhece, gosta, desgosta, surpreende-se positiva e negativamente, até se render apaixonado por ela. As sensações se multiplicam, oscilam, e norteiam os sentimentos do narrador. E a pintura de sua amada é o resultado de seus deslumbramentos. Alencar ocupa com maestria os espaços da história com distribuições do pitoresco, com referências de cores, manchas, claros e escuros. A purgação no amor de Paulo reside numa certa vontade própria de sua amada, ou de sua capacidade de se despir do tipo que a oprime, e se mostrar inteira, pura, apenas para ele. É dessa purgação que (re)nasce Maria da Glória, a luz por trás da sombra, que só Paulo enxerga. Maria da Glória, alter-ego da prostituta Lúcia, é uma mulher sem máscaras nem metáforas. Não se pinta, usa roupas simples, é avessa ao movimento e dedicada a casa e à irmã mais nova, Ana, cujo bem-estar é a razão de todo seu sacrifício. A irmã Ana é a personificação da pureza, da graciosidade que não lhe foi permitida (Ana, em hebraico, significa “cheia de graça”).



Esse arremate romântico é que dá à musa fragmentada de Alencar, possuída de arquétipos sócio-culturais e do veneno da luxúria, ares de heroína. E é aí que voltamos, inevitavelmente, à Maria da Glória. A ‘generosidade’ de Paulo e a purificação de Lúcia são os instrumentos da transformação de Lúcia em Maria da Glória ou, se assim podemos dizer, do seu renascimento. A sugestão por trás de todo o romance, veiculada através do olhar despudorado de Paulo, é que Maria da Glória sempre esteve no âmago do ser conturbado que era sua “casca”, a cortesã Lúcia. Maria da Glória era alguém cuja existência não era permitida na realidade social que a cortesã precisava assumir. A “larva” sob o casulo, o claro do pirilampo, só podia ser visto pela pureza de espírito do personagem narrador.



O surgimento do que se sugere ser a verdadeira alma da protagonista parece identificar a musa trágica, ou antes, a verdadeira heroína, aquela cujo extremo sacrifício individual proporciona um bálsamo aqueles que para ela são caros. Mas Lúcia praticava o sacrifício do corpo, era lasciva e socialmente execrável. Era preciso, portanto, um motivo forte, inconteste, para explicar seu aparente desvio moral. É então que Alencar cria pra ela, nos últimos capítulos do romance, uma razão capaz de desvanecer quaisquer sentimentos de repulsa pela personagem principal: a doença da família, a saúde do pai, da irmã, e a inocência perdida para salvar suas vidas.



A conduta imoral de Maria da Glória se transforma então, num suplício viabilizado tanto pela sua ingenuidade quanto pela má fé do homem urbano. Para preservar a si mesma e à sua família, constrói uma nova identidade, cujo nome toma emprestado de uma colega de infortúnio, morta antes dela. A escuridão da casca contrasta diretamente com seu ‘nome de guerra’, Lúcia, luz. Da mesma forma, a personalidade de Maria de Glória conflita constantemente com a condição de sua persona, ou mais propriamente, sua sombra. Ainda assim, Alencar atribui à cortesã uma dignidade aparentemente incomum. Lúcia vende tudo quanto ganha com seus serviços de ‘mulher bonita’, enquanto recebe com alegria os presentes modestos de Paulo, simbolicamente representados nos brincos de azeviche (cap. IX). Além disso, ofende-se com a desconfiança de Paulo com relação ao seu comportamento, e enfraquece fisicamente quando precisa cumprir o seu ‘dever’ social; tudo acaba contribuindo para que o jogo de claro e escuro que vá se desenhando gradativamente em torno da heroína.



A reconstrução de Maria da Glória passa também por um último traço – a renúncia. Lúcia/Maria da Glória abdica de tudo que lucrou com a luxúria e decide viver simploriamente, levando como reserva financeira apenas o que Paulo lhe dera. A valorização do amor, aliada a total espoliação do desejo sexual, a esta altura praticamente abolido da sua relação com Paulo, provoca uma empatia quase que obrigatória. É improvável que um leitor não se solidarize com o martírio individual da personagem-título.



Alencar, tão irônica quanto brilhantemente, faz de sua Lúcia um baluarte dos principais valores da sociedade pseudo-burguesa do Brasil do séc. XIX. O aparecimento de Maria da Glória revela uma personagem casta de coração, fiel ao seu amor, resignada e simples, renunciando ao desejo para se sentir pura através da afeição do narrador. Quando engravida de Paulo, o destino de Lúcia não poderia ser outro senão a morte. Afinal, é o filho de Lúcia, concebido em pecado, e não de Maria da Glória. Antes, porém, Alencar redime mais uma vez a sua protagonista, ao fazê-la preferir a morte ao aborto da criança; mesmo após seguir os conselhos médicos, o corpo de Maria da Glória não expulsa o feto e ela morre comungando com Paulo o amor celestial, numa atitude representativa de um casamento, já que este se recusa a ser mais do que um pai para sua irmã Ana. Em um único quadro, e num mesmo personagem, Alencar pinta os aleijos e crenças morais do ambiente social que se precisava identificar com um cenário exuberante, pictórico, ou o que hoje chamaríamos de tipicamente brasileiro.



Em Lucíola, a representação semântico-pictórica de Alencar é magnífica, com cada palavra adquirindo uma forma, uma cor e um sentido. Sob a ótica individual, há o que se considerar nas identidades fragmentadas tanto da personagem-título, quanto do personagem-narrador. Os claros e escuros de suas personalidades coabitam com os claros e escuros do cenário sócio-político, sendo direta e indiretamente manipulados por esse cenário. O final moralista – absolutamente proposital, em minha opinião, contribui para a crítica de Alencar ao caráter não-original da identidade brasileira. A última linha de Paulo em Lucíola expressa seu temor de não ter conseguido pôr em palavras todas as sensações pelas quais passou ao lado de sua musa inspiradora. Com um criador como Alencar, esta preocupação não apenas não se justifica como prova ser justamente o contrário. Após mais de cem páginas de uma pintura intensa e livre do desbotamento do tempo, é bastante justo dizer que nenhuma sensação, certeza e, principalmente, nenhuma imagem deixou de ser traçada no imaginário do leitor daquela época, ou das outras épocas para as quais a herança alencariana continua a existir.



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Um comentário:

vaniza disse...

PRECISO DE LUCIOLA EM FORMA DE PEÇA DE TEATRO, PODES ME AJUDAR????oBRIGADA.

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